Título: Atração fatal
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/08/2005, Nacional, p. A6

Desde Collor, fala-se em impeachment com a ligeireza reservada aos assuntos banais A relativa facilidade com que o País enfrentou, e superou, o processo do impeachment de Fernando Collor de Mello parece ter criado uma certa atração por soluções fatais para resolver questões de natureza política envolvendo o presidente da República. Trata-se do assunto com uma ligeireza atroz, nem sendo necessário chegar à situação de crise. Aconteceu no início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, quando parte do PT, com apoio de outros partidos de esquerda, ensaiaram o "Fora FHC" sob a sustentação intelectual de expoentes da estatura do habitualmente lúcido Tarso Genro, atual presidente interino do PT.

Ali havia o desconforto do partido com a derrota pela segunda vez em primeiro turno e subjacente estava uma ausência completa de rumo a respeito de como fazer oposição eficiente a FH. Na falta de bandeiras, adotou-se o discurso extremo.

Guardadas as devidas proporções, até porque temos a crise instalada, agora repete-se a sem-cerimônia institucional. Há dois meses discute-se o impedimento constitucional do presidente Luiz Inácio da Silva com um nível de ansiedade quase obsessivo, como se o tema fosse ao mesmo tempo causa e conseqüência únicas das vicissitudes em curso.

No lugar de se examinar ponto a ponto, com profundidade e discernimento, as graves ocorrências diárias, todas as energias concentram-se numa só indagação: "Quando isso tudo chegará ao presidente?"

Ora, "isso tudo que está aí" já "chegou" a Lula há muito tempo, mais não fosse porque o escândalo surgiu de dentro do governo e pegou em cheio o partido do presidente.

Impedido, do ponto de vista político-eleitoral, Lula está desde a comprovação das primeiras evidências de que só tinha projeto de poder e nenhum plano de governo eficaz. Só com isso, não teria mais argumentos para se apresentar de novo à Nação pedindo a renovação da esperança coletiva na abstração mudancista que resultou na sua eleição.

Veio a crise, Lula perdeu a sustentação política do PT e de toda a aliança partidária envolvida no esquema de compra e venda para formação de maioria parlamentar; viu sumir o lastro de seus principais auxiliares, feridos de morte pelo escândalo, e vai perdendo também a popularidade, a confiabilidade e a credibilidade junto à população.

Portanto, a crise vitimou o presidente de forma incontestável, situação agravada por sua incapacidade, ou impossibilidade, de fornecer as respostas que lhe dariam condições de carregar sozinho nos ombros, escorado no simbolismo de sua figura, o restante da jornada.

Isso não significa que a solução automática deva ser a interrupção do mandato, seja pela via da renúncia ou do impeachment. Entre a situação trágica em que Lula se encontra e a saída antecipada da Presidência há uma distância grande a ser preenchida por investigações pertinentes e debates consistentes.

As primeiras servem para descobrir fatos, indicar responsabilidades e estabelecer punições. Se em algum momento ficar evidenciado o crime de responsabilidade e houver sustentação legal para a abertura de um processo contra o presidente, o instrumento está na Constituição para ser usado.

A ansiedade presente nas atitudes de governo e oposição - e aí a imprensa e setores da sociedade entram na mesma dinâmica - leva à inversão das coisas. Falar no impeachment do presidente passa a ser o objetivo, prende todas as atenções e tudo o mais em volta é percebido como ilícito de segunda linha.

A obsessão pelo impedimento é um atalho e acaba deixando de lado aspectos importantes da crise. As denúncias vão se sucedendo e, por não "chegarem ao presidente", são vistas como insignificantes.

Por essa lógica, o crime eleitoral e o financiamento de campanhas de partidos em troca de apoio parlamentar ganharam moldura de legalidade implícita.

A falta da avaliação consistente a respeito de cada episódio atropela o processo e rende equívocos. Ações que não envolvam diretamente a figura do presidente deixam imediatamente de ter importância e, no caminho, transgressores vão sendo transformados em heróis só porque tornam plausível a hipótese da realização do intento final.

Assim, Roberto Jefferson é absolvido de sua história pregressa e Duda Mendonça preserva sua imagem profissional ao confessar co-autoria em crimes contra a ordem econômica, pois seu gesto fez a crise chegar mais perto do presidente.

O presidente nacional do PL, Valdemar da Costa Neto, admite ter vendido seu partido ao governo e isso soa muito natural, porque o mais importante é ele dizer que o "presidente sabia".

Chove-se, com isso, no molhado, pois o presidente não poderia desconhecer atos cuja finalidade era sua sustentação no poder.

O fato de a discussão do impeachment anteceder as evidências do crime de responsabilidade não é politicamente educativo. Repete a didática petista do passado. Além disso, o excesso de desenvoltura no trato do tema leva à banalização do instrumento, abre espaço a estratégias de vitimização e relega todos os crimes já descobertos ao patamar dos pormenores.