Título: Uma trajetória que ajuda a pensar o Brasil
Autor: Angela Lacerda e Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/08/2005, Nacional, p. A17

Certas personalidades políticas brasileiras, com forte presença na formatação de fatos que influenciam a vida de toda uma sociedade, só podem ser analisadas com mais rigor à luz da história, contando com a benevolência da decantação dos anos. Entendê-las, em sua dimensão contemporânea, quando ainda pairam no ar relações pessoais e paixões acesas, talvez seja tarefa impossível. O governador e deputado Miguel Arraes enquadra-se nesse grupo. Porém, corramos alguns riscos e façamos algumas abordagens sobre sua rica trajetória. Sem dúvida, não se pode falar da vida política nacional dos últimos 50 anos sem se lembrar do líder pernambucano. Diria, é impossível - ou então a "história seria mentirosa", para usar uma expressão do canto do cordelista Octacílio Batista - riscá-lo do rol das grandes biografias políticas brasileiras, particularmente se o foco é o Nordeste. Esquecê-lo, em se tratando de Pernambuco, seria obra de ressentidos ou criminosos intelectuais. No Estado, Arraes fincou estilo de fazer política e, dessa maneira, se inseriu com competência na articulação de momentos ricos da história brasileira. Não à toa, foi referência de uma postura popular no período pré-golpe de 1964, continuou como um dos símbolos da resistência na ditadura militar e, com a redemocratização, converteu-se em interlocutor regional de larga influência, ramificando-a Brasil afora pelo partido que reconstruiu, o PSB.

A maior realização política e histórica de Arraes foi ter celebrado, na condição de governador, nos fins dos 50 e início dos 60, o primeiro contrato coletivo de trabalho no campo, preconizando economia moderna que dera grandes passos com Vargas e se afirmara, após 55, com Juscelino e seu famoso plano de metas.

Em cenário de relações quase escravocratas no campo, Arraes teve a coragem de reconhecer um novo tempo e de regular práticas modernizantes capitalistas. O mais interessante é que ele tenha dado aquele passo no mesmo momento em que Francisco Julião se empenhava em organizar ligas camponesas, precursoras do MST. Enquanto as ligas apontam para a invasão e ocupação de propriedades, Arraes avançava e apoiava a organização dos trabalhadores em sindicatos, mais propícios para disseminar conscientização e atividade produtiva.

O mais instigante, na análise da figura de Arraes, é o porquê de sua fixação na política regional, quando outros líderes, como Brizola, buscaram vôos mais universais, chegando a polarizar o debate nacional e até mesmo a disputar a Presidência. Entre as muitas respostas possíveis, está o fato de Arraes ter resistido ao rompimento com os paradigmas da década de 1960, muito marcados pelo nacionalismo e por viés populista também próprio daquele período. Um modelo que se esgotara com o forte crescimento econômico alcançado pelo Brasil no período em que vicejou entre nós o regime militar. Ou seja, a vocação modernizante e mudancista do Arraes do primeiro governo não se verificou nos seus governos posteriores ou em suas posturas como líder após a ditadura. Ele cedeu a uma visão utópico-regressiva, embora sempre matizada por compromissos pessoais nítidos para com as grandes massas deserdadas. Compromissos esses que não podiam se realizar em virtude da nova estrutura econômica e social que o cercava.

Após o retorno do exílio, Arraes procurou agir politicamente com um corpo de idéias de uma formação histórica passada - daí, ter enfrentado dificuldades para se afirmar em Pernambuco como corrente de lastro sólido e para se lançar ao País como alternativa de transformações reais.

O PCB e o PPS quase sempre mantiveram com Arraes alianças. Tensas, em alguns momentos, por razões históricas e doutrinárias. Entretanto, nunca deixamos de render tributo ao líder maior dos pernambucanos por quase meio século, ao homem que amou seu povo e dedicou boa parte de sua vida a mudar o destino dos brasileiros. Particularmente, lembro com carinho da sua dedicação ao processo que resultou na minha eleição para o Senado, em 1994. Entender Arraes, sua ação e idéias, seus acertos e erros é abrir-se à construção de novos caminhos para o Brasil. Um tema atual e necessário às esquerdas, quando temos à nossa frente os descaminhos do governo Lula.