Título: Morre Arraes, o último mito da velha esquerda
Autor: Angela Lacerda e Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/08/2005, Nacional, p. A17

Depois de resistir por 58 dias a uma grave infecção pulmonar agravada por complicações cardíacas e renais, morreu às 11h40 de ontem, no Hospital Esperança, no Recife, um dos grandes mitos da esquerda brasileira, Miguel Arraes de Alencar, de 88 anos, fumante durante 72. Presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB), deputado federal e três vezes governador de Pernambuco, Arraes será sepultado hoje no Cemitério Santo Amaro. O velório transcorre desde ontem no Palácio Campo das Princesas, que ele ocupava em 1964, quando foi preso e deposto pelos militares. Arraes foi interna do no dia 17 de junho, com suspeita de dengue e logo transferido para a UTI do hospital, de onde não mais saiu. Na UTI, sofreu três hemorragias, quatro focos de infecção e uma cirurgia, recebeu transfusões de sangue e, depois da paralisia dos rins, foi submetido a 13 sessões de hemodiálise. Passou a maior parte do tempo sedado, mas com momentos de consciência. Como todo fumante inveterado, padeceu todo o tempo com enormes dificuldades respiratórias.

Os médicos instalaram um marca-passo externo e, sob medicação intensa, chegou a ter momentos de melhora, que, no entanto, duraram pouco. Em uma dessas ocasiões os médicos chegaram a informá-lo sobre o estado em que estava e, segundo testemunhas, teria feito um de seus derradeiros comentários: "Eu saio dessa." No hospital, foi visitado pelo presidente Lula e por todas as grandes lideranças políticas de Pernambuco, inclusive seus arquiadversários, o governador Jarbas Vasconcelos e o senador Marco Maciel.

O POVO SOU EU

A morte de Arraes fecha um importante ciclo na vida política brasileira - os anos 60 - quando se travou intenso debate sobre o modelo brasileiro da era pós-Getúlio Vargas. O grupo mais conservador defendia o liberalismo e uma aliança com os EUA; as várias alas da esquerda, às quais Arraes se filiava, preferiam o desenvolvimentismo com um Estado forte, que faria as grandes reformas, distribuiria renda e terras e implantaria o socialismo no País.

Em torno de Arraes se construiu a aura de grande líder dos pobres e camponeses nordestinos. Ele denunciava "as elites", inimigo abstrato e onipresente em seus discursos, mas não deixava de negociar com usineiros e políticos conservadores, de aceitá-los como parceiros em suas chapas eleitorais e de tratar com generosidade as dívidas deles com o governo.

Olhar mat reiro, voz rouca, sempre pigarreando e olhando para os lados, esse cearense de Araripe era homem de muito ouvir e pouco falar. Preferia negociar a romper, sempre argumentando em defesa do "povo". Um político pernambucano disse dele: "Luiz XIV dizia 'O Estado sou eu'. Arraes diz 'O povo sou eu'".

Ele entrou na política pela porta de trás: depois de uma burocrática carreira no Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), foi convidado para ser secretário do governo Cid Sampaio e não saiu mais da cena. Foi deputado, prefeito e três vezes governador de Pernambuco. Fez uma pequena revolução ao negociar com usineiros o Pacto do Campo, que garantiu direitos trabalhistas aos camponeses e um salário mínimo, mesmo em tempos de entressafra da cana-de-açúcar. Introduziu na educação o método Paulo Freire, estimulou organizações nas favelas e negociou, constantemente, com as Ligas Campon eses do líder Francisco Julião.

A roda da Hi stória cortou sua carreira ao meio justo no melhor momento: o golpe militar de 1964 o obrigou a 14 anos de exílio na Argélia. Ao voltar, em 1979, nas asas da anistia, o eixo do grande debate nacional se transferira para o ABC paulista, onde a bandeira das reformas tremulava nas mãos do metalúrgico Lula, escorado em uma forte estrutura sindical, urbana, sulista. A sociedade brasileira era mais complexa, seu discurso era regional, simples e desimportante. Sua voz não produzia mais o eco de outros tempos.