Título: Exorcismo reaparece, em defesa da Igreja
Autor: Adriana Dias Lopes
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/08/2005, Vida&, p. A28

Há 40 anos, a Igreja Católica começou a se desinteressar pelo velho ritual do exorcismo, com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Pois quatro décadas depois, ela ameaça retomar a prática. Vê-se obrigada a fazer isso em defesa própria, já que os pentecostais arrebanham cada vez mais adeptos da Igreja esconjurando demônios. O espetáculo exorcista exibido diariamente com tremendo sucesso a centenas de fiéis em programas noturnos nos meios de comunicação tem deixado a linha tradicional da Igreja em estado de alerta. "A Igreja sabe que existe a possibilidade de perder mais uma vez a mão com o exorcismo, como ocorreu na Idade Média com a caça às bruxas", explica o teólogo Afonso Soares, professor de Ciências da Religião, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. "Há risco. Na Igreja politizada e moderna, cânticos, exorcismos e bênçãos não têm espaço. De um lado, a nova geração de padres não tem formação teológica sólida. De outro, contraditoriamente, desde o fim da década de 60 muitos fiéis se sentiram abandonados pela Igreja social, pelos rituais de uma maneira geral. Eles têm sede e curiosidade disso."

Um recente lançamento editorial no Brasil pode servir de prova da última afirmação. Em maio, chegou às livrarias o passo-a-passo da celebração de exorcismo, uma publicação inédita no País (veja quadro ao lado). Em apenas três meses, o Ritual de Exorcismos e Outras Súplicas (Editora Paulus, R$ 28, 92 págs.) já teve 1.500 exemplares vendidos - a metade da tiragem total. "É impressionante uma obra tão específica vender tanto", analisa o padre Valdecir Conte, diretor-comercial da Paulus. "Outra surpresa é que os leigos são a metade dos compradores."

Leigos e padres ganharam também, neste ano, um curso sobre exorcismo em Roma. Em 13 de outubro, começam aulas teóricas e práticas sobre o assunto na Academia Pontifícia Regina Apostolorum. Com direito ao aval do Vaticano, o curso vai discutir temas que vão dos clássicos "as práticas do exorcismo na Igreja" e "o demônio nos textos bíblicos" aos mais improváveis "o satanismo e ocultismo no mundo dos jovens" e "o novo ritual do exorcismo".

"A idéia das aulas surgiu com o interesse crescente dos adolescentes em satanismo e ocultismo e também de padres que nos falaram da necessidade de transmitir uma informação melhor sobre os temas", disse Carlo Climati, um dos professores da Regina Apostolorum, à agência internacional católica Zenit.

DISCRIÇÃO

Dentro da própria Igreja, no entanto, há divergências sobre o assunto. A cúpula católica lida com o exorcismo de maneira discretíssima, apesar do recente interesse em expor o tema. Menos de 3% dos casos de possessão devem ser levados a sério, de acordo com a linha tradicional. "Para chegar à conclusão de que uma pessoa está possuída, o padre tem de ter laudos médicos comprovando que não se trata de problema psiquiátrico, por exemplo", diz o teólogo Fernando Altemeyer, da PUC de São Paulo.

Só padres com a autorização do bispo local ou do papa podem praticar o exorcismo. O Vaticano tem apenas seis exorcistas oficiais. Um deles, o padre Gabriele Amorth, declarou no ano passado ao vaticanista Sandro Magister, da revista semanal italiana L'Espresso, que "90% dos padres e bispos católicos não crêem na ação extraordinária do demônio". A causa disso, segundo Amorth, é que "há tempos não se ensina no seminário nada dos anjos e dos demônios, nada dos exorcismos. A Igreja aprovou um novo ritual que para nós, exorcistas, é um desastre. Proíbe agir em caso de malefício, quando a maioria dos casos de possessão deriva precisamente daí."

A brecha deu corda para os padres da Renovação Carismática - movimento católico de inspiração pentecostal - ganharem espaço e fiéis com as chamadas orações de libertação. "O ritual é praticamente idêntico, mas não posso ser chamado de exorcista porque não tenho a chancela do bispo", conta o padre Antonello Cadeddu, coordenador da Comunidade Imaculada do Espírito Santo e assistente espiritual do Conselho Nacional da Renovação Carismática Católica. "Livro as pessoas das obsessões, que são manifestações do demônio". Às quintas-feiras, Cadeddu reúne centenas de fiéis em busca de cura espiritual.

A Igreja não incentiva a ação dos carismáticos, mas é tolerante com eles. Não poderia ser diferente pelo fenômeno de massa que representam. "Os pentecostais crescem cada vez mais no cristianismo. Uma das projeções que se faz para 2025 é que um terço dos cristãos será de linhas pentecostais", calcula o teólogo Soares, também da PUC-SP.

Em 2000, Joseph Ratzinger, então cardeal da Congregação para a Doutrina da Fé, chegou a publicar um documento afirmando que as orações dos fiéis para que Deus os curasse de suas enfermidades são legítimas. Mas recomendou que qualquer ato de sensacionalismo fosse afastado (leia texto abaixo).

O MAL

A origem do mal tem duas principiais explicações simbólicas. Numa das teorias, satanás fazia parte da corte de Deus - assim como reis, Deus tinha sua corte. "Satanás não era mau. Era o assessor com a função de acusar seres humanos", explica o padre Antônio Manzatto, diretor da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo.

Mas a explicação poética é outra. Antes de criar o ser humano, Deus fez quatro arcanjos: Lúcifer, Gabriel, Miguel e Rafael. Lúcifer era o mais lindo de todos, era ele que carregava a espada de luz. Com o tempo, o arcanjo passou a se sentir poderoso com tamanha beleza, a ponto de enfrentar seu criador. Miguel, então, lutou com Lúcifer para defender Deus. Miguel ganhou a batalha, jogando Lúcifer no abismo. Lúcifer, então, foi soterrado e passou a viver no subterrâneo.

O mal na teologia tem atuação emblemática para a Igreja."Deus sempre contou com o mal. O fato de ele criar o mundo já indica que esse mundo não pode ser perfeito. Só Deus pode ser perfeito", ensina Manzatto. "O mal serve para ser vencido pelo homem."

Para Manzatto, a grande questão da Igreja moderna não é saber de onde vem o mal, mas o que a gente faz com ele. "O mal não se explica, não se defende. Combate-se", conclui. "Na Idade Média, era preciso saber os nomes dos demônios para dominá-los. Hoje, as forças do mal não podem ser combatidas com ritos. Guerras, fome e mensalão se atacam com consciência social."