Título: A perigosa ilusão de Lula
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/08/2005, Notas e Informações, p. A3

Nem a soma de todas as razões que desaconselham uma eventual iniciativa de promover o impeachment do presidente Lula deve levá-lo a se imaginar invulnerável. Se esse é o seu estado de espírito, como parece, o resultado da ilusão poderá ser um catastrófico efeito bumerangue. E se isso afinal acontecer, ele merecerá entrar para a história no papel surrealista do chefe de Estado que deu tudo de si, por palavras e ações, não para salvar o seu mandato, mas para praticamente forçar aqueles que relutam em pedir o seu impedimento a fazê-lo - antes até do eventual aparecimento de evidências incontroversas que tornariam acadêmico o debate inteiro sobre o assunto. Lula não precisa que ninguém o empurre para o despenhadeiro: bastam-lhe as próprias pernas e uma assombrosa incompreensão das realidades deste país que também ele e o seu partido ajudaram a construir. Para começar, um mínimo de lucidez e sensibilidade para prever a repercussão de seus atos junto a uma opinião pública esta sim "machucada" - expressão que se diz que usou para falar de si - o teria levado a cancelar, por óbvios motivos de força maior, o jantar com o presidente venezuelano Hugo Chávez, na mesma quinta-feira em que Duda Mendonça, o criador do Lulinha, paz e amor, tirou o chão debaixo de sua criatura, com um sísmico depoimento à CPI dos Correios.

Depois, relatos dos bastidores do seu pronunciamento na abertura da reunião ministerial da sexta indicam que só a contragosto - e só em parte - ele concordou com os ministros Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, e Antonio Palocci, da Fazenda, que insistiam em que pedisse desculpas aos brasileiros. Como se viu, ele empurrou o tema para o fecho improvisado da alocução, de modo esquivo, impessoal e eufemístico: o partido "tem que" se desculpar, assim como o governo, "onde errou", quando a frase certa seria "pelas culpas de um e de outro que assumo, como primeiro mandatário do País".

Deu no que deu: a condenação unânime do discurso, pela gritante insinceridade, pequenez e falta de coragem de quem o proferiu. Até o ex-ministro Tarso Genro, presidente do PT, considerou a fala "insuficiente". A tal ponto Lula foi alvejado - também por se declarar traído, sem apontar, se não os nomes, pelo menos a posição dos traidores na hierarquia do partido e do governo - que brotou no Planalto a idéia de uma espécie de segunda versão, ampliada e corrigida, da criticada manifestação. Dessa vez ele falaria diretamente à sociedade, em rede nacional de rádio e TV, sem o pretexto de uma reunião ministerial ou outro evento oficial.

No entanto, quem sabe se estimulado pelos previsíveis aplausos de seus ministros ao fim do discurso e talvez por se julgar "incompreendido" pelos críticos, segundo teria dito a portas fechadas, no velório de Miguel Arraes, o autocomplacente Lula descartou a sugestão. O raio de visão do presidente parece estreitar-se a cada dia. Essa talvez ainda seja uma avaliação benigna. Leiam-se as declarações à revista Veja do petista histórico (e vice-prefeito na gestão Marta Suplicy, em São Paulo) Hélio Bicudo, e o Lula que delas emerge é um político sem sensibilidade ética. "Ele é mestre em esconder a sujeira embaixo do tapete. Sempre agiu dessa forma. Seu pronunciamento de sexta-feira confirma", acusa o jurista Bicudo, com uma contundência que chega a surpreender.

O fundador do PT, por exemplo, discorda da versão do partido de que o assassínio do então prefeito de Santo André, Celso Daniel, foi crime comum. "A história ainda não está clara", alerta. Quanto a Lula, o "sempre agiu dessa forma" não é gratuito. Bicudo lembra o episódio da primeira grande denúncia de corrupção numa administração petista. Ele presidiu a comissão criada no partido para apurar a acusação do ex-secretário de Finanças de São José dos Campos Paulo de Tarso Venceslau, de que a prefeitura favoreceu o empresário Roberto Teixeira em contratos de serviços. "A responsabilidade dele ficou claríssima", assevera o jurista. "Foi pedida a instalação de uma comissão de ética, e isso foi deixado de lado por determinação de Lula, porque Roberto Teixeira é compadre dele." O único punido foi o acusador.

"Essas coisas todas vão se acumulando", raciocina Bicudo, "e, no final, acontece o que se vê hoje." E hoje, situando-se acima do bem e do mal, Lula insiste em provocar o pior.