Título: Lições da greve do INSS
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/08/2005, Notas e Informações, p. A3

Não há qualquer surpresa no acordo firmado entre o governo federal e o funcionalismo do INSS, com o objetivo de pôr fim à greve que foi deflagrada no último dia 2 de junho. Segundo uma antiga e conhecida tradição no âmbito da administração pública brasileira, as autoridades cederam e a sociedade, como sempre, perdeu. Tendo reivindicado um aumento linear de 18%, os grevistas conseguiram reajustes salariais entre 5% e 7%, sob a forma de gratificações. Não é tão pouco quanto parece. O custo para os cofres públicos será de R$ 140 milhões, dos quais R$ 56 milhões serão fixos e os demais R$ 86 milhões vinculados a ganhos de produtividade. Além disso, o governo prometeu um plano de carreira para os 210 mil servidores do setor de saúde e trabalho, aos quais concedeu reposição de 47%, em seis anos, que começará a ser paga a partir de março.

Mas não é só. Apesar de ter ordenado o corte do ponto e prometido que não recuaria nessa decisão, o governo concordou em não descontar os dias parados. Pelo acordo, os servidores do INSS poderão "compensar" as faltas, mediante a ampliação da jornada diária. E os 5,2 mil funcionários que tiveram o contracheque zerado, no holerite de julho, receberão seus salários como se nada tivesse acontecido. "O acordo representou uma proposta adequada para o governo e para os servidores", afirmou o ministro do Trabalho, Luís Marinho. "Os grevistas não terão prejuízo e isso é importante", disse o diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde na Previdência de São Paulo, Pedro Totti.

Com isso, pagarão a conta dos 74 dias de greve, a terceira mais longa ocorrida no INSS nos últimos dez anos, as vítimas de sempre: aposentados, pensionistas, trabalhadores doentes, inválidos, viúvas e gestantes. Ou seja, pessoas inocentes e impotentes, que dependem desse órgão para sobreviver. Por causa da paralisia dos postos de atendimento da Previdência, somente no Estado de São Paulo mais de 2,7 milhões de pessoas ficaram sem ter como encaminhar seus pedidos de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, salário-maternidade e pensão por morte.

E quem cruzou os braços e deixou de cumprir sua obrigação funcional saiu no lucro, sem ter contabilizado um único centavo de prejuízo material e sem ter sofrido qualquer sanção administrativa em seu prontuário. Já quem tinha direito a um serviço essencial assegurado pela Constituição, no capítulo das garantias fundamentais e das liberdades públicas, e pagou por ele como contribuinte do INSS, foi acintosamente desrespeitado em sua cidadania e em sua dignidade.

O que torna possível essa absurda inversão de valores - como já observamos em outros editoriais - é a ausência de regras jurídicas disciplinando a greve no setor público. Desde que a Constituição de 88 concedeu esse direito ao funcionalismo civil, nenhum governo teve a coragem necessária de enviar ao Congresso um projeto de lei disciplinando seu exercício. Graças a essa omissão é que surgiu a "greve remunerada", no âmbito do Estado.

Ao contrário do setor privado, onde a paralisia do trabalho prejudica tanto as empresas, que passam a vender menos, quanto os empregados, que perdem os dias parados e podem ser dispensados, na administração pública os servidores não correm riscos. Ou melhor, correm um pequeno risco de não terem suas reivindicações atendidas pelas autoridades. Como os funcionários públicos não podem ser demitidos e os governos não têm coragem de descontar os dias parados, a possibilidade de sofrerem alguma punição é remota.

É por isso que o desfecho da greve do INSS não causa surpresa. Causa, isso sim, apreensão. Como o Executivo reservou no orçamento deste ano verba apenas suficiente para um aumento simbólico de 0,1% a todos os servidores civis da União, é inevitável que a concessão por ele feita aos trabalhadores do setor de previdência e saúde estimule o funcionalismo dos demais setores a também paralisar suas atividades, em nome do velho e surrado pretexto da isonomia. Se os governantes cederam diante das pressões de uma corporação, por que não cederão frente às pressões das demais? Nada disso estaria ocorrendo se o direito de greve no setor público já tivesse sido regulamentado, como a Constituição determinou há 18 anos.