Título: Forças da ONU ficam mais ofensivas
Autor: Colum Lynch
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/08/2005, Internacional, p. A15

NOVA YORK - Em 6 de julho, 1.400 soldados fortemente armados da força de paz da ONU do Brasil, Peru e Jordânia, apoiados por helicópteros argentinos e chilenos, marcharam para uma favela haitiana para um ataque de surpresa à casa de Emmanuel Terror Wilme, líder de gangue que estava provocando tumulto pela volta ao poder do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide. Na Operação Punho de Aço, Wilme e seis membros da gangue morreram, segundo um relato confidencial da ONU. Mas a sangrenta batalha não conseguiu desalojar a gangue de seu território na favela de Porto Príncipe e resultou em dezenas de civis feridos.

A operação em Cité Soleil, que durou 12 horas, indicou uma escalada da força no Haiti, onde a missão da ONU comandada pelos brasileiros vem sendo criticada há meses pelos EUA e outros por seu fracasso em derrotar as gangues armadas.

Também foi um reflexo de uma mudança na tática das forças de paz da ONU que, em meados da década de 1990, faziam o possível para evitar combates. Agora, os soldados de capacetes azuis estão demonstrando uma renovada disposição para usar um considerável poder de fogo contra grupos armadas que consideram uma ameaça aos esforços pela paz.

"Houve uma modificação fundamental que muito pouca gente notou. Agora, a força de paz da ONU adota uma atitude preventiva, mais ofensiva contra as ameaças", disse Nancy Soderberg, ex-embaixadora da ONU que supervisionou a força de paz da missão dos EUA na ONU de 1997 a 2000. "Os EUA aprenderam isso quando invadiram o Haiti em 1994. Atacados, os americanos derrotaram totalmente os atacantes e isso foi o fim da história."

A ONU abandonou as operações de combate ofensivo em grande parte depois da complicada operação na Somália, no início da década de 90, quando a caça ao senhor da guerra somali Mohamed Farah Aidid, causou a morte em combate de 113 membros da ONU e trouxe à baila questões sobre a capacidade das forças de paz de reprimir facções armadas, mesmo mal equipadas. O confronto também resultou num desastroso ataque de surpresa dos EUA a um reduto de Aidid em Mogadiscio no qual morreram 18 soldados americanos e teve como conseqüência a retirada da força de paz da ONU.

Mais recentemente, a ONU usou táticas ofensivas mais agressivas no Haiti, Congo e Serra Leoa. No Congo, soldados da ONU apoiados por helicópteros pilotados por indianos mataram mais de 50 rebeldes num ataque a um mercado em março.

O combate recebeu pouca atenção na época porque as forças americanas estão engajadas em conflitos mais amplos no Iraque e no Afeganistão.

Mas contribuiu para um aumento nas baixas em combate da ONU nos últimos dois anos. O número de mortos da força de paz da ONU aumentou de 64 em 2003 para 91 em 2004. A contagem chegou a 64 nos primeiros seis meses deste ano. Houve 22 baixas em combate no Haiti e no Congo, incluindo os nove membros do corpo de paz de Bangladesh mortos em fevereiro numa embosca em Ituri, Congo.

Soderbergh, que agora é vice-presidente da organização sem fins lucrativos Grupo de Crises Internacionais disse que sua entidade tem insistido com o Conselho de Segurança para autorizar explicitamente os soldados da força de paz no Congo a usarem a força de forma preventiva para se contrapor a possíveis ameaças de grupos armados. Mas acrescentou que a ONU terá de ponderar tal determinação em relação ao potencial de matar civis pegos no fogo cruzado.

A Missão de Estabilização da ONU no Haiti (Minustah) foi estabelecida em abril de 2004 para manter a paz após a retirada das forças militares americanas que haviam ido ao país para restaurar a paz depois que opositores armados do governo promoveram uma insurreição contra o presidente Aristide. Os EUA pressionaram Aristide a fugir para o exílio, ou enfrentar uma morte provável nas mãos dos insurgentes.

Confrontada com a violenta oposição dos legalistas de Aristide, a missão da ONU intensificou suas táticas militares nos últimos meses para assegurar a estabilidade antes das eleições.

A Operação Punho de Aço começou às 4h30, quando uma unidade avançada de soldados peruanos entrou furtivamente no bairro de Bois Neuf, em Cité Soleil, para lançar um ataque de surpresa à residência de Wilme. Mas o grupo logo encontrou resistência dos bem armados e bem treinados seguidores de Wilme, que abriram fogo de três direções. Os peruanos reagiram com 5.500 tiros e granadas contra a casa de Wilme.

Enquanto isso, uma companhia mecanizada brasileira que fazia a segurança de perímetro para os peruanos foi atacada por 30 a 40 membros da gangue. Os combatentes de Wilme cercaram os soldados da ONU durante sete horas, com tiros de franco-atiradores e coquetéis molotov, enquanto eles lutavam para retirar dois veículos blindados de transporte de pessoal de um atoleiro. Reagindo em sua saída, os brasileiros deram mais de 16.700 tiros no bairro densamente povoado.

David Olson, um médico americano que recentemente serviu no Haiti pela ONG francesa Médicos sem Fronteiras, disse que a Operação Punho de Aço "provocou muitos danos colaterais". Olson disse que 27 haitianos, na maioria mulheres e crianças, deram entrada em sua clínica após a operação de 6 de julho. Disse ainda que não poderia determinar os responsáveis pelos ferimentos, mas acrescentou que metade das vítimas disse ter sido ferida pelas forças de paz da ONU.

Ele contou que uma mulher que estava quase no sétimo mês de gravidez foi atingida por uma bala no útero que matou a criança. Lembrou-se de ter cuidado de outra mulher que havia sido atingida por uma bala que atravessou uma das paredes da sua casa. "Perguntei-lhe quem tinha atirado nela e ela respondeu 'Minustah'". A mulher "estava em casa cuidando de seus afazeres e levou um tiro nas costas".

A ONU não compila registros da morte de civis nas operações de pacificação, mas uma autoridade do alto escalão da força de paz, Jean-Marie Ghéhenno, admitiu que "pode ter havido algumas baixas civis" durante o ataque. "Estamos analisando muito cuidadosamente essas acusações", disse ele. Não há uma contagem confiável dos civis ou membros da gangue que morreram.

Um relato da ONU da operação concluiu que "a área continua sob controle da gangue. As forças de segurança ainda não conseguem entrar nas áreas centrais da Cité Soleil nem patrulhar a pé". Ghéhenno disse que é necessário resistir aos grupos que ameaçam arruinar as missões de pacificação. Mas ressalvou que os comandantes da ONU precisam encontrar um meio termo entre travar uma guerra total e recorrer à passividade que caracterizou as operações da ONU em Srebrenica, onde pacificadores holandeses cruzaram os braços enquanto tropas servo-bósnias matavam milhares de civis desarmados.

"Não queremos nenhuma Srebrenica, mas também não queremos outro Mogadiscio", disse ele.