Título: Marcas e cicatrizes no tecido urbano
Autor: Benedito Lima de Toledo
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

O prefeito José Serra anunciou o propósito de criar uma nova faixa de circulação para veículos nas marginais dos Rios Tietê e Pinheiros, com cobrança de pedágio. A idéia traz algumas preocupações. A primeira é a cogitação de que se trataria de uma antiga prática de sucessivos prefeitos: deixar a "marca" de sua gestão. E, assim, a população viu surgirem obras como o famigerado Minhocão, o Fura-Fila, a Avenida Água Espraiada e outras bem conhecidas, que, antes de marcas, são cicatrizes urbanas. A pressa com que tais obras são realizadas evidencia sua má qualidade. A Avenida Água Espraiada merece a classificação de avenida? O que era para ser um bem elaborado projeto, com pistas locais e expressas, faixas de nivelamento e conversão, se tornou uma estrada cortando agressivamente o tecido urbano. Os pedestres foram ignorados. Não há passarelas. A aridez resultante não pode sequer ser ocultada com recurso a um paisagismo "tapa-buraco". As relações de proximidade e vizinhança desapareceram. Esse tipo de obra é desvinculado de qualquer planejamento. Como a cidade é um organismo vivo e, como tal, sujeito a mutações, intervenções isoladas dessa natureza acarretam transtornos imprevisíveis.

Voltando às marginais dos rios da cidade, podemos constatar que ali prevalece a lei da selva. Os caminhões trafegam indiscriminadamente por todas as faixas, sem nenhum respeito a limites de velocidade. Não há vestígio de policiamento e os mesmos caminhões se dão ao luxo de "costurar", ignorando os demais veículos. Quando ocorre um acidente com um desses mastodontes, o transtorno atinge segmentos inteiros da cidade. Enquanto os poderes públicos se omitirem tão acintosamente diante desses abusos, trafegar pelas marginais será sempre uma operação de risco. A irregularidade do piso é outro motivo de preocupação. Imaginem-se as pistas bem pavimentadas e balizadas por linhas brancas, com os "olhos de gato" em pontos críticos. Já não seria grande melhora?

Preocupante, igualmente, é o drama das pontes. Alguém conhece alguma bem projetada, com exceção da velha Ponte das Bandeiras? Ora, quando um veículo entala sob uma dessas pontes, há duas hipóteses a considerar: ou a carroceria é muito alta e a ponte é muito baixa ou se adota a solução da velha anedota, esvaziar um pouco os pneus.

As alças de acesso às pontes são mal projetadas e mal sinalizadas. Algumas surgiram desajeitadamente após a inauguração, para desespero dos motoristas, particularmente os de caminhão. A remoção de um desses veículos tombados nesses acessos põe à prova a paciência de toda a população. O caso da Ponte da Cidade Universitária é muito elucidativo para os estudantes de Arquitetura e Urbanismo. Veículos, notadamente caminhões vindos do sul, depois de cruzar um bairro residencial, chegam à Marginal do Rio Pinheiros. Vencida a ponte, eles são obrigados a realizar uma volta completa para ganhar a marginal direita. Como se vê, circuito digno de um trem fantasma de parque de diversões. Seria recomendável remendar mais uma vez ou mesmo construir nova ponte nesse mesmo local? Pólos geradores de tráfego, como a Ceagesp, não existiam ao tempo da construção dessa ponte. O urbanista e professor Anhaia Melo, com bom humor, recomendava: "Quando a zona leste estiver congestionada, abra uma avenida para a oeste." Ou seja, a melhoria do acesso a uma região congestionada seria alcançada pela criação de alternativas.

Pontes bem projetadas são motivo de orgulho em todos os países do mundo civilizado. São chamadas "obras de arte" pelos franceses. Carregadas de história, são referências na memória da cidade. Não há o vício de mudar o nome de pontes para homenagear o falecido da véspera.

Uma das mais antigas e tradicionais faculdades é, não por acaso, a École des Ponts et Chaussées, em Paris, formadora de profissionais de reconhecida competência.

Já as pontes paulistanas são motivo de constrangimento. Mal projetadas, no lugar de "obras de arte" se constituem em "obras de empreiteiras", onde está ausente qualquer preocupação urbanística ou arquitetônica.

A se considerar, ainda, que algumas pontes foram construídas para atender a acesso a antigos caminhos. O que se vê são veículos fazendo longos percursos para atingir pontos de retorno. Um cuidadoso estudo, atendendo às normas da boa técnica, poderia rever a posição dessas pontes, sua eventual substituição e a necessidade de sua melhor articulação com o sistema viário. Para essa tarefa as universidades formam arquitetos e urbanistas.

Os problemas das marginais têm origem remota. Houve época em que todos os veículos vindos do sul transitavam pela Ponte dos Pinheiros. Esse fato deveria ser resolvido fora do Município. A solução é bem conhecida: o anel rodoviário destinado a articular as vias de acesso à capital. Com isso, eliminar o trânsito de passagem. Em diversas cidades européias, obras dessa natureza surgiram no local das antigas muralhas defensivas. Paris notabiliza-se por seus vários anéis concêntricos e nos países de língua alemã encontramos as "Ring Strasse". Prefeitura e Estado deveriam somar esforços para mobilização de recursos para essa empreitada.

Dessa forma, voltamos ao ponto inicial: pistas regulares, faixas bem definidas e sinalizadas seriam um primeiro passo. Novas pontes nascidas de um planejamento urbanístico completo que não se restringisse a intervenções localizadas. Obras desse vulto seriam, por sua natureza, programa para várias gestões, sem perda de continuidade.

Seria isso pedir muito em país com longa tradição de obras eleitoreiras? Espírito público e maturidade política caracterizam uma boa gestão. A cidade merece.