Título: Oposição mostra bom senso
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/08/2005, Notas e Informações, p. A3

A decisão dos partidos de oposição de evitar, por enquanto, uma ação pelo impedimento do presidente Lula foi uma demonstração de bom senso político. Os oposicionistas têm razão ao dizer que um pedido de impeachment só se sustenta quando resulta de uma exigência da sociedade - e essa exigência só se manifesta sob o impacto de provas irrefutáveis de ilícitos que tornem absolutamente inaceitável a permanência do primeiro mandatário no cargo. No caso presente, há um dado peculiar, porém. Raríssimos hão de ser os brasileiros, mesmo entre os mais de 33 milhões de eleitores que não votaram em Lula no segundo turno, que torcem pelo aparecimento de tais evidências. É sabido, por exemplo, que as "elites" de que o presidente se queixa quando acometido de surtos populistas são as primeiras a desejar que ele fique no Planalto, com plena legitimidade, até o fim do seu atual mandato, para que não desmorone depois o que o governo tem de melhor: a política econômica do rigor fiscal (descontados os juros altos e a voracidade tributária). Mas a quase unanimidade sobre a inconveniência da destituição legal de Lula é alimentada ainda por outra consideração. Menos o receio de uma convulsão social - de resto, improvável - do que o de passar vergonha pela humilhação que recairia sobre o País.

Esse sentimento seria comensurável com o orgulho que a vitória de Lula despertou também entre os seus não-eleitores, embora não tivessem ilusões sobre o seu preparo para a função, porque ela simbolizou, mais do que qualquer outro evento que se possa citar, a singularidade da condição brasileira no cenário político latino-americano. Em contraste gritante com os vizinhos latino-americanos, para não ir além - e desmentindo de forma cabal a visão do próprio PT sobre o País -, a ascensão de Lula coroou um processo iniciado com a morte de Vargas, em que o poder político, econômico e social foi mudando de mãos a partir do Sul do País, irradiando-se para todo o território nacional.

Naturalmente, o seu triunfo nas urnas atestou a robustez adquirida pela democracia política brasileira em menos de 20 anos. Mais importante do que isso, a sua trajetória pessoal só foi possível porque, apesar dos níveis vexaminosos de pobreza e desigualdade, o Brasil é uma democracia social comparável com a norte-americana no que diz respeito ao processo de mobilidade vertical de suas populações. Se cair em desgraça o brasileiro que mais encarna as imensas possibilidades de ascensão social existentes no País, a imagem do Brasil sofrerá um retrocesso acabrunhante.

Em outro plano ainda é benéfico o descarte - ou ao menos o congelamento - da idéia de remover o presidente. Pois ao mesmo tempo se remove um inegável, ainda que não ostensivo, inibidor do esclarecimento cabal das denúncias em cena há 3 meses. Sobretudo as que pegam no nervo do problema - a corrupção no setor público federal, de onde procede grande parte dos valores cuja ordem de grandeza deixa aturdidos até os brasileiros habituados a distinguir entre milhares e milhões. A necessária ênfase na ponta final dos escândalos - com a identificação e punição dos políticos que receberam, em qualquer época, somas de Marcos Valério - não pode fazer com que se perca de vista o essencial: a origem da dinheirama espúria.

Uma linha de investigação não pode travar outra. Por exemplo, a apuração da verdade com certeza sonegada pelo publicitário Duda Mendonça à CPI dos Correios - não é crível que o ex-marqueteiro de Paulo Maluf, beneficiário da Operação Pau-Brasil, só tivesse aberto conta no exterior para receber o que o PT lhe devia - e a auditagem das contas de campanha do partido em 2002 devem coexistir com o aprofundamento dos inquéritos sobre todas as formas de uso ilícito de recursos públicos na administração direta e indireta. Ainda ontem, noticiou-se que maracutaias já destrinchadas custaram aos Correios R$ 54,6 milhões; que o Banco do Brasil acabou de lançar como "de difícil liquidação" os seus mais de R$ 21 milhões em créditos com o PT; que o Refer, o fundo de pensão da Rede Ferroviária Federal, pode ter perdido pelo menos R$ 4 milhões em operações conduzidas por um gerente de confiança do ex-secretário de comunicação do PT Marcelo Sereno.

Ainda há muito a desvendar antes de se mover, se for o caso, uma ação contra Lula.