Título: Contra o analfabetismo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/08/2005, Notas e Informações, p. A3

Uma das maiores conquistas sociais, no Brasil, nas últimas duas décadas, foi a universalização do ensino fundamental. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (Pnad), 97% das crianças entre 7 e 14 anos estão matriculadas naquele nível de ensino. As políticas públicas, adotadas a partir da vigência da Constituição de 1988, destinadas a ampliar o acesso das crianças ao ensino fundamental têm funcionado eficazmente, podendo-se prever que, em relação às gerações futuras, o analfabetismo será apenas um fenômeno estatístico - já que em nenhum país a universalização do ensino atinge 100% da população na idade adequada. Mas isso não significa que o analfabetismo foi vencido. Em 2002, segundo a Pnad, 11,8% da população com 16 anos de idade ou mais não sabia ler e escrever. Dez anos antes, porém, esse contingente era 30% maior, situando-se na faixa dos 17,2% da população naquela faixa etária. Houve, portanto, um notável progresso na luta contra o analfabetismo.

Parte desse avanço deve-se à iniciativa de organizações não-governamentais, que às vezes contam com apoio do poder público. Esse é o caso, como mostrou reportagem do Jornal da Tarde, publicada no domingo, do Programa Saber Mais, da Comunidade Kolping do Brasil. Essa organização, utilizando-se de recursos repassados pela Secretaria Estadual da Educação, desenvolve um dos maiores projetos de alfabetização de jovens e adultos da América Latina. Atende 12,5 mil alunos, de 14 a 86 anos de idade, em 450 núcleos de ensino na zona leste da capital e em cinco cidades da Grande São Paulo. Os alunos têm duas horas de aulas diárias, de segunda a quinta-feira, e os professores, que podem ter cursado apenas o ensino fundamental, são incentivados a continuar os estudos. Vários deles têm, hoje, graus universitários.

Os alunos adquirem familiaridade com as letras e os números por intermédio do chamado método construtivista, que ensina as disciplinas do ensino fundamental a partir da experiência da vida cotidiana. A partir do valor da tarifa de ônibus e dos preços das feiras, por exemplo, ensina-se aritmética. Ou seja, os conceitos básicos das disciplinas não são ensinados a partir de abstrações, e sim de fatos concretos, que fazem parte da vida dos alunos. "Já passei por cinco cursos de alfabetização de alunos e não conseguia compreender o que me ensinavam", relata um aluno de 37 anos. "Aqui no grupo, entendo o que está sendo falado e não sinto vergonha."

A parceria entre a Comunidade Kolping e a Secretaria Estadual da Educação de certa forma se estende à Secretaria da Saúde. É das Unidades Básicas de Saúde que provém boa parte dos adultos que se inscrevem nos cursos de alfabetização. São, em geral, pessoas que procuraram os serviços de saúde para tratamento de pressão alta e depressão e são encaminhadas às aulas. E nesses grupos de adultos "são raras as reclamações de problemas de saúde", revela uma educadora, que explica: "Na verdade, as pessoas precisam é de estímulo."

Um dos aspectos mais importantes desse programa de alfabetização de adultos é que, sendo ele uma parceria com a Secretaria da Educação, os cursos são oficialmente reconhecidos. Os alunos, quando se sentem devidamente preparados, podem se matricular nas escolas da rede pública. Podem, também, se inscrever nos cursos supletivos, a partir da 5ª série, e continuar seus estudos até o ensino médio e mesmo o superior.

Com isso, reduz-se bastante a incidência de uma das piores pragas dos cursos de alfabetização de adultos - o analfabetismo funcional. Isso ocorre, na definição da Unesco, quando pessoas familiarizadas com as bases da leitura e da escrita se mostram incapazes de ler ou de escrever um bilhete simples. Essa disfunção - que, por exemplo, comprometeu gravemente os resultados do Mobral, gigantesco esforço governamental de alfabetização de adultos, realizado na década de 1970 - acontece porque o processo de alfabetização só se consolida quando os alunos completam a 4ª série.

O Programa Saber Mais é um exemplo que deveria ser seguido em outras unidades da Federação, onde o analfabetismo é maior do que em São Paulo.