Título: Plagiando Vicente Celestino
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/08/2005, Notas e Informações, p. A3

De volta ao palanque pela primeira vez desde o seu contrafeito discurso sobre a crise, na reunião ministerial da sexta-feira passada - cujo ápice foi um claudicante e impessoal pedido de desculpas ao País pelo que está aí -, o presidente Lula surpreendeu. Mesmo os que já se resignaram à amarga perspectiva de que o primeiro mandatário não conseguirá alçar-se nem ao patamar da crise que o desmoraliza, muito menos ao gabarito da função presidencial que parece ignorar por completo, só podem ter reagido com assombro ao que ele se permitiu dizer no comício de quarta-feira, em um assentamento rural de Vitória da Conquista, no Sul da Bahia. Pois nunca o presidente foi tão longe no exercício da pieguice demagógica. Toda a essência de sua fala foi um plágio do compositor Vicente Celestino, indiscutivelmente o mais talentoso praticante do gênero lacrimoso-brega na música popular brasileira, eternizado em peças antológicas como O ébrio e Coração de mãe. Este último foi o mote escolhido por Lula para tocar o seu público. Repetindo pela enésima vez as suas juras de inocência nos escândalos de corrupção trazidos a público ao longo dos últimos três meses, proclamou: "Estou mais aberto do que coração de mãe." Caso alguém não tenha entendido, elaborou: "Não tem nada mais sensível e maleável que coração de mãe." E caso alguém não se tenha dado conta disso antes, ficou definitivamente claro que a breguice piegas não é só um subproduto de sua indigência cultural: é uma jogada política de quem está dedicado obsessiva e exclusivamente à sua campanha eleitoral.

De caso pensado, Lula se vale do que nele aflora com naturalidade para mergulhar em um populismo do mais baixo nível, sem paralelo na crônica dos governantes nacionais. Deslocando-se pelo País a bordo de um jato de US$ 50 milhões e sustentado pelo dinheiro público do despertar ao adormecer para reconstruir a sua imagem danificada e resgatar as suas chances reeleitorais em queda, explora com total despudor o genuíno sentimento do povo e os valores que lhe são mais afins - a família, em primeiro lugar. Jamais um presidente teve a caradura de dizer que o seu trabalho envolve "cuidar para que a família brasileira viva em harmonia, viva em paz". Como um pastor de almas, pregou: "Que pai goste do filho, que filho goste da mãe..."

Assoberbado por tamanha responsabilidade, não é de espantar que não dê conta dos encargos próprios de um chefe de Estado convencional. A preocupação com a paz e a harmonia que precisam reinar no seio das famílias para que, segundo esse despautério, "possam construir a base da nação livre e soberana que nós vamos consagrar no nosso país" há de explicar por que lhe faltou tempo e interesse para se dar conta também dos delitos que os seus companheiros de governo e partido vinham consagrando como prática rotineira visando à sua eternização no poder. E ele tem, ainda por cima, o desplante de dizer que sabe "dos objetivos" da crise política, insinuando de novo que o querem destruir.

Crises não têm objetivos: têm causas e efeitos. Das primeiras, a principal é o alheamento do presidente ao que se passava ao seu redor - supondo, naturalmente, que imaginasse que muitos das dezenas de deputados conservadores que se passaram para o lado governista na Câmara o fizeram sem outro estímulo além da súbita conversão aos decantados princípios éticos e transformadores do PT. Dos efeitos, o que mais se espera de imediato é a apuração cabal das suspeitas, com a punição efetiva dos culpados; não o cortar na própria carne ou o doa a quem doer da retórica do presidente que tentou impedir a criação da CPI dos Correios, mas a faxina ética que Brasília deve ao Brasil.

Disse ainda o pater familias com coração de mãe que "não esqueceu de onde veio e sabe muito bem para onde vai". Parece ter se esquecido que, lá de onde veio, as pessoas não se vangloriam de não terem estudado - ao contrário de quem não aproveitou porque não quis as oportunidades para superar as limitações de suas origens sociais e diz que para governar o Brasil basta ter "bom coração". Por isso, sabe muito bem para onde vai só quando se trata de trocar as servidões da governança pelos palanques da demagogia e das emoções fabricadas: desde que a crise rebentou, Lula visitou 27 cidades, fez 3 viagens ao exterior e discursou 33 vezes. Este país, no que depende de seu presidente, é que não sabe para onde vai.