Título: Por que choramos ?
Autor: Fabiana Cimieri, Mariana Caetano
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/08/2005, Nacional, p. A10

"Opaco é o fim do mundo pra qualquer navegador/ que perde o oriente e entra em espirais/ e topa pela frente um contingente que ele já deixou pra trás." O alerta, poético e profético, foi dado por Chico Buarque e Edu Lobo há 20 anos, quando compuseram "Meia Noite", uma canção para a peça O Corsário do Rei, de Augusto Boal. Furtadas as bússolas éticas e programáticas, em pleno alto mar da crise, a sensação de muitos deputados do PT, naquele 11 de agosto, foi de meia-noite em nossas vidas. O pranto sentido de tantos, com lágrimas derramadas em cena aberta, era uma síntese líquida de decepção, vergonha e indignação. Plenário de parlamento é lugar de racionalidades, representações - algumas bem teatrais - e alguma dose de hipocrisia. Ali, a couraça da persona política que cada um veste não comporta fragilidades emocionais. No entanto, não deu para segurar. As lágrimas públicas já tinham sido derramadas em particular, quando nos reunimos para avaliar as revelações de Duda Mendonça. Toda maquiagem tem preço, lembra o marqueteiro, mas nós não sabíamos que a embalagem eleitoral dos generosos anseios de mudança que mais de 52 milhões de brasileiros concretizaram em voto seria paga com trapaças, doleiros e paraíso fiscal. Ali surgiu nosso inferno real!

Ninguém chorou por seus mandatos, por um efêmero status de deputado. Naquele momento de catarse não prevista, choramos o roubo do sonho coletivo (bem modesto, convenhamos) de um país menos desigual, com instituições públicas mais transparentes e protagonismo popular. Choramos a constatação, que teimamos em querer ver desmentida por gestos futuros, de que, no poder, as pessoas não mudam: se revelam. Choramos a força do dinheiro, que vende aspirações justas e pode dar às estrelas brilho de aluguel. Choramos, sobretudo, a dilapidação do patrimônio ético-político construído por tantos, de Henfil e Hélio Pellegrino a irmã Dorothy, passando por Florestan Fernandes e Chico Mendes, e por milhares de brasileiras famílias Silvas, que aprenderam com o PT que "reclamando junto melhora", que "a luta faz a lei" e "direito não exercido é direito perdido". Choramos, com raiva, a quebra de confiança e a rendição a um pragmatismo que é repetição de tudo o que condenamos.

Mais do que pelo PT e pelo governo, que já se distanciara de nós com suas alianças fisiológicas e sua ultra-ortodoxia econômica, choramos pela derrota da esquerda como alternativa política para este país: num momento de triste emoção, o tempo se condensa e o lamento por um presente que desconstitui o épico passado, de Zumbi a Olga Benário, alcança o escuro do futuro. Choramos por não nos consolar dizer, convictos, que os malfeitos não o foram em nosso nome. As celebrações de dois anos e meio atrás, quando anunciávamos "o governo de nossas vidas", deram lugar a vendaval de perguntas sem respostas, e à vergonha perante as novas gerações, na dúvida cada vez menos duvidosa: fracassamos?

Passado aquele momento síntese, agarramo-nos à compreensão que afaga: choramos para ter a visão mais límpida e entender que é assim mesmo que se processa a história humana, com forças sociais contraditórias, entre avanços e recuos, fidelidades e traições, emperramentos e superações. E o canto de Chico e Edu, ao fim, de novo explica a dor: "os soluços dobram tão iguais/ seus rivais, seus irmãos/ seu navio carregado de ideais/ que foram escorrendo feito grãos/ as estrelas que não voltam nunca mais/ e o oceano pra lavar as mãos..."