Título: Vestido para mentir
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/08/2005, Nacional, p. A6

Delúbio Soares pediu algumas vezes à CPI que o respeitasse, mas ele mesmo não respeitou ninguém: nem os parlamentares nem o País, muito menos o partido e o governo aos quais ainda se refere com a precedência do pronome "nosso". O ex-tesoureiro compareceu vestido para mentir e debochar. Aplicou-se com afinco, mas não conseguiu convencer com sua humildade estudada, cujo artificialismo era revelado de quando em vez pelo sorriso desdenhoso que lhe tomava o canto direito do lábio superior.

O "desrespeito" de que Delúbio se sentia alvo era produto da profunda, e justificada, irritação que tomou conta de todo o plenário da comissão encarregada de investigar se foram comprados e vendidos votos dentro do Congresso.

A única contribuição útil dada ontem pelo ex-tesoureiro, aliás, foi confirmar que, senão votos, certamente partidos integrantes da aliança eleitoral e da chamada base de apoio parlamentar foram comprados; aliaram-se ao candidato e depois ao presidente Luiz Inácio da Silva em troca do pagamento de suas despesas junto a fornecedores.

Foi bem claro ao informar que o PT se responsabilizou pelos gastos dos partidos em 2002 e que, em 2003, renovou os acertos para patrocinar as campanhas de 2004.

O primeiro movimento garantiu ao candidato Lula tempo maior de televisão, a adesão de um empresário de grande porte como vice e, com isso, o rompimento de resquícios de sectarismo de classe; depois da eleição, assegurou ao presidente Lula um primeiro ano de vitórias no Congresso e um segundo período de proteção suficiente para evitar a CPI dos Bingos, agora em curso por determinação da Justiça.

Não obstante seja corrente o uso do caixa 2 (corrente e criminoso), não é usual o interfinanciamento de partidos coligados em eleições ou aliados em governos.

Mesmo se fosse aceitável a transferência de recursos do PT para seus parceiros, haveria de ter uma contrapartida. E é esta justamente o que caracteriza a compra dos partidos para se aliarem a Lula.

Cínico como nenhum personagem ainda se viu no atual escândalo - numa atuação bastante semelhante às antigas performances de Paulo Maluf -, Delúbio Soares a horas tantas teve o desplante de observar que "o PT está dando uma contribuição muito grande ao Brasil" ao desnudar os esquemas de dinheiro ilegal em campanhas eleitorais e mostrar o quanto é honesto um partido que, no lugar de "extorquir" (palavra dele) empresários e assaltar o Estado, fez empréstimos legais para fazer frente a compromissos financeiros.

Ainda que comprar apoio de partidos, sonegar impostos e transacionar à sombra de ilegalidades fosse uma grande lição de vida, Delúbio Soares também não conseguiu conectar a legalidade aos empréstimos.

O deputado Luiz Antônio Fleury lhe perguntou porque o PT não fez ele mesmo, pessoa jurídica, os empréstimos no Banco Rural, no lugar de recorrer à intermediação das empresas de Marcos Valério.

"Porque as despesas não eram contabilizadas", justificou sem explicar. Se um banco dispensa garantias para emprestar, nem de longe vai se preocupar em esmiuçar o destino dado ao dinheiro pelo tomador.

E assim, sendo perguntado a respeito de uma coisa e respondendo outra inteiramente diferente, Delúbio Soares seguiu depoimento afora em tom de descarado acinte.

Num dos momentos mais eloqüentes, disse que pensaria no caso do presidente Amir Lando sobre o prazo de oito dias para apresentar à CPI os nomes das pessoas a quem repassou dinheiro e o montante dessa contabilidade. "Vou ver se dá", disse o tesoureiro na data em que se completavam 96 dias desde a eclosão da crise originada nos dados que alegava desconhecer.

O mesmo homem que ontem negou diversas evidências, repudiou com veemência a hipótese de o PT ter remetido dinheiro ao exterior e ter comprado apoios, no depoimento anterior havia negado que o PT tivesse algum dia, e por qualquer motivo, mantido relações comerciais com Marcos Valério Fernandes de Souza.

Não obstante sua desfaçatez - "não roubei, fiz tudo pela política" -, o destino de Delúbio está traçado. Se não houver interferências nos procedimentos de investigação, é cadeia o que o aguarda e não, como acredita, a retomada "a partir de dezembro" de sua vida profissional, seja como professor de matemática, dirigente partidário ou burocrata sindical.

Ao PT isso não parece desconfortar, pois não há quem tire Delúbio de lá. Por razões não esclarecidas, o partido o protege, indiferente ao fato de que, a cada cena como as protagonizadas no depoimento de ontem, enterra-se junto na lama e perde qualquer possibilidade de se recuperar junto à opinião pública, nem se diga a curto, mas a longuíssimo e tormentoso prazo.

Gincana

Continuam chegando aos magotes mensagens de protesto contra a análise positiva a respeito do discurso do ex-presidente José Sarney. Os menos afeitos ao contraditório ameaçam romper relações com os escritos aqui publicados.

A assessoria do senador informa contabilidade oposta: no gabinete chegaram 200 e-mails, 140 a favor do discurso, 60 contra.

Já aqui, só um de apoio aportou.