Título: 'É claro que José Dirceu tem responsabilidade política pela crise'
Autor: Vera Rosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/08/2005, Nacional, p. A12

BRASÍLIA - O presidente do PT, Tarso Genro, diz que o ex-chefe da Casa Civil e deputado José Dirceu (SP) tem responsabilidade política pela crise do mensalão, que atingiu em cheio o partido e o governo. Um dia depois de conversar com Dirceu e pedir para ele deixar a chapa que vai disputar o diretório nacional do PT, em setembro, Tarso não usou de meias palavras. "Seria desrespeitoso com o ex-ministro Dirceu dizer que ele não tem responsabilidade política. É claro que ele tem. Foi dirigente máximo do PT, foi dirigente máximo da campanha do presidente Lula e do governo", afirma Tarso, que deixou o Ministério da Educação no mês passado para comandar o PT. "Dizer que Dirceu não tem responsabilidade política seria outorgar a ele uma espécie de alienação que deporia contra sua capacidade."

Nesta entrevista ao Estado, Tarso diz que não será uma "figura decorativa" nem um "coronel de orientação dogmática" no PT. Em conversas reservadas, ele ameaça desistir da candidatura à presidência do partido, na eleição com voto dos filiados, se Dirceu não abandonar a chapa.

Na tentativa de levar o PT a uma inflexão à esquerda, Tarso também critica a política econômica capitaneada pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci. "Eu não apresentaria um programa de governo que tivesse as características da política econômica atual porque seria incompatível com a reeleição do presidente Lula", insiste. Para o presidente do PT, um superávit primário na faixa de 5% do PIB, como chegou a cogitar a equipe econômica, seria um "rematado absurdo" e um "desrespeito ao povo brasileiro".

O sr. conversou com Dirceu e pediu a ele que saia da chapa do Campo Majoritário, inscrita para disputar o diretório nacional do PT. Ele afirmou que não renunciará à candidatura. O racha é irreversível?

O que eu levei a José Dirceu foi que ele não deveria considerar sua exclusão da chapa como afirmação de culpabilidade, mas como um gesto político de quem reconhece que a antiga maioria se esgotou e que é preciso um novo núcleo dirigente. A antiga maioria não existe mais porque está excessivamente fragmentada.Transformou o partido num apêndice do governo. Sempre brindou de maneira acrítica, na minha opinião, a política econômica, que tem grandes virtudes, mas também um elemento de paralisação de políticas sociais mais amplas pelas altas taxas de juros e pelo excessivo superávit primário.

Dirceu afirma que, ao dizer que o Campo Majoritário acabou, o sr. está querendo fazer um haraquiri. Como o sr. responde a esse comentário?

Esse juízo traduz exatamente o conceito que eu emiti a respeito da maioria anterior do PT. Ou seja, que ela se justifica apenas pelo seu número.

Está demonstrado que o sr. não tem controle sobre o PT. Foi derrotado quando propôs que os deputados acusados de envolvimento no mensalão fossem submetidos à Comissão de Ética do partido e quando sugeriu que aqueles que renunciassem aos mandatos perdessem a legenda. O que o sr. vai fazer diante das resistências?

Seria absolutamente atípico se eu tivesse o controle do partido logo depois de ter assumido a presidência. Acho que o presidente do PT não deve ter o controle do partido. Deve, sim, ser um organizador que, por sua capacidade de criar consensos, dê ao partido determinada direção. O meu empenho é para que o próximo presidente do PT não seja apenas uma figura decorativa, mas também que não seja um controlador do aparato partidário porque isso redunda um certo culto à personalidade.

Mas o sr. não teme que, com essa estrutura, acabe se tornando uma figura decorativa no PT, uma rainha da Inglaterra?

O presidente que aceitar ser apenas expressão de uma determinada maioria fixa no PT será sempre ou um rígido coronel de orientação dogmática, que fará com que esse grupo sempre funcione de maneira mecânica. Ou o contrário: será apenas uma expressão dessa maioria quantitativa. Eu não faço nenhuma dessas opções equivocadas, que estão na raiz da crise pela qual estamos passando.

Se José Dirceu não sair da chapa, o sr. manterá sua candidatura à presidência do PT?

Não gostaria de falar sobre isso hoje. Se eu disser que não serei candidato à presidência do PT poderia parecer uma coerção sobre José Dirceu, que, neste momento, está avaliando se permanece ou não na chapa. E, se eu disser que permaneço candidato em qualquer hipótese, poderia estar induzindo-o a considerar que não tem responsabilidade para compartilhar na solução da crise.

Quem são os responsáveis por essa situação de descalabro em que chegou o PT, com uma dívida de mais de R$ 160 milhões?

Como presidente do partido não gostaria de declinar nomes.

Mas é crível que só o ex-tesoureiro Delúbio Soares seja o único responsável?

Não acho que Delúbio seja o responsável exclusivo. O fato de Delúbio ter cometido ilegalidades não o torna uma pessoa desprezível nem uma pessoa que deva ser sacrificada para salvar o partido e o governo. Isso seria uma indignidade de nossa parte. É sabido que, se Delúbio cometeu ilegalidades, cometeu num ambiente que favoreceu que isso ocorresse e, portanto, suas responsabilidades devem ser compartilhadas politicamente com outros dirigentes.

O sr. se refere a Dirceu?

Acho que Dirceu tem trajetória de luta política democrática no Brasil respeitável e é homem digno. Deve ser tratado com respeito. Até agora não tem nenhum elemento material, nenhuma prova que o comprometa com ilegalidade. De outra parte, seria desrespeitoso com o ex-ministro Dirceu dizer que ele não tem responsabilidade política. É claro que ele tem. Foi dirigente máximo do PT durante os últimos dez anos, foi dirigente máximo da campanha do Lula, do governo. Dizer que Dirceu não tem responsabilidade política seria outorgar a ele uma espécie de alienação que deporia contra a sua capacidade de direção. Agora, o grau dessa responsabilidade tem de ser avaliado.

Por que a Executiva do PT não aprovou, então, a abertura de Comissão de Ética para investigar os deputados citados pela CPI?

Foi um equívoco. A Comissão de Ética dá ainda mais respeitabilidade para as investigações. O PT não pode se perder numa espécie de caldo diluidor onde operam lideranças mais ou menos carismáticas.

O pedido de desculpas feito pelo PT, sem punições, é suficiente?

Não. O partido vai punir. Acho que muitas dessas pessoas que cometeram erros vão aceitar essa punição.

O sr. não teme que essa crise leve a um pedido de impeachment de Lula?

Não há fundamentação moral, nem jurídica, nem política para o processamento do impeachment. Em segundo lugar, o mandato do presidente está seguro por dois pólos sociais de grande influência: a ampla massa de setores informais da população, em processo de inclusão, e os setores vinculados ao capital que vêem na estabilidade econômica um valor em si mesmo. Eu sou contra o impeachment porque o governo do presidente Lula tem legitimidade para governar e não há nenhuma prova do seu envolvimento.

O sr. apoiará a reeleição do presidente Lula se o projeto econômico for o mesmo?

Eu não apresentaria um programa que tivesse as características da política econômica atual porque seria incompatível com a reeleição do presidente. O meu juízo não é de adversidade em relação ao ministro Antonio Palocci, mas é hora de combinar estabilidade com altas taxas de crescimento e política de juros mais sensata. Espero que, se o presidente Lula for candidato à reeleição, ele possa dizer para o País que no próximo governo não vamos ter superávit de 5% nem juros na estratosfera, como temos hoje. Pelo que sei, de 80% a 90% do partido também não aceitaria que se apresentasse no próximo período a mesma política de juros e de superávit, para não falar em política econômica.

Com a crise política, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, chegou a estudar a possibilidade de adotar um ajuste fiscal ainda mais rigoroso...

O processo de globalização, de integração das economias, introduziu uma nova categoria na esfera da política. A insegurança passou a ser elemento central na política pós-moderna e se tornou projeto econômico. Isso tem efeito poderoso sobre qualquer governo. O único governo que está enfrentando essa questão de uma maneira rebelde é o da Venezuela. É o governo em que se tem uma sociedade civil muito desorganizada, instituições partidárias que foram desconstituídas e onde o poder político estabelece relação direta com a sociedade organizada.

Quer dizer que a Venezuela de Hugo Chávez é modelo para o Brasil?

Não é modelo. É um projeto muito específico para a situação venezuelana e nada tem a ver com o Brasil.

Mas qual é exatamente a sua divergência?

Vou dar um exemplo concreto. O Fundo Monetário Internacional (FMI) pediu superávit de 3,75% do PIB. O que fez a equipe econômica? Pensou: como estamos mal, temos de dar mais segurança aos nossos credores. Mais do que o FMI está pedindo. E essa oferta de segurança se torna cada vez mais oferta de segurança. Tanto é que, dizem, a equipe econômica estava pensando para o ano que vem num superávit de 5%. O que é, na minha opinião, um rematado absurdo e um desrespeito às necessidades do povo brasileiro .

Se o presidente Lula não disputar a reeleição, o sr. entrará no seu lugar?

Isso não tem o menor cabimento. Se Lula não for candidato a presidente, a primeira questão que teremos de examinar é se teremos candidato. Lula é a liderança universal que o PT tem. Todos nós somos lideranças parciais.

O presidente tem dito que foi traído, mas não deu nomes. Ele falou com o sr?

Não. O que ele comentou comigo de maneira mais acentuada é que o PT tem que ser muito humilde e sério para sair dessa crise porque, na verdade, a crise se originou de erros do PT que foram contaminando o governo. E que o PT tem que fazer força muito grande para mostrar uma nova imagem para a sociedade e, ao mesmo tempo, corrigir as limitações internas que determinaram que essa crise tivesse esse vigor.

Depois da tempestade, o PT vai tentar enquadrar o governo Lula?

O PT deve ter autonomia política em relação ao governo. O partido não pode ser mera reprodução das propostas do Palácio do Planalto. Deve ter soberania crítica para fazer propostas para o governo com a sabedoria de reconhecer que o presidente Lula não é enquadrável pelo PT nem o PT é enquadrável pelo governo. É possível, no entanto, colaborar com propostas para o governo que tenham capacidade de convencimento para que possamos ter uma transição para um novo modelo de desenvolvimento.

O sr. acha possível que o PT continue fazendo alianças com partidos que sempre criticou, como PTB, PL e PP?

O arco de alianças ideal de um governo como é de centro-esquerda e não mais centrista, como a que deu suporte até agora ao presidente Lula. Uma aliança de centro esquerda pode dar sustentabilidade para um programa de desenvolvimento econômico mais ousado do que nós temos. O centro é sempre uma relação, não é uma posição. Seria desrespeitoso em relação ao presidente e aos nossos adversários dizer como eu imagino o sistema de alianças para o próximo período.

E no PT, como o sr. imagina o futuro das tendências?

A ideologização entre direita e esquerda é hoje desqualificante da vida interna do partido. Na verdade, obstrui o debate. É preciso um desbloqueamento no PT. Quando se diz que o senador Suplicy é um social-democrata, parece que o resto do partido é bolchevique. Essa ideologização vai perdendo força porque não tem consistência.