Título: As sutilezas maquiavélicas da força estudantil
Autor: Ivan Carvalho Finotti
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2005, Aliás, p. J4

Quando "caiu" o 30º Congresso da UNE, em uma nevoenta manhã de outubro de 1968 em Ibiúna, no interior de São Paulo, quase todas as lideranças do movimento estudantil universitário foram presas de um só golpe. Era o sonho de todo "cana" decapitar um movimento dessa forma. O fato de os estudantes terem se isolado no mato facilitou ainda mais a operação repressiva, sem as interferências sempre presentes nas manifestações urbanas, onde o povo aderia aos estudantes. Levados ao presídio da Tiradentes, os quase mil líderes, eu entre eles, começamos um movimento de protesto contra a nossa prisão com uma greve de fome por tempo indeterminado. Longe das nossas bases, não podíamos imaginar que em poucos dias explodiria a mais ampla agitação jamais ocorrida no País. As grandes manifestações do nosso "Maio de 68" (que na verdade foi em junho, mas a marca francesa nos contaminou a posteriori) ocultaram o fato de que em outubro muito mais cidades, além do eixo Rio-São Paulo, se manifestaram e por mais tempo. Algum gênio do marketing político (naquele tempo isso era conhecido como "agitprop", ou agitação e propaganda) inventou o slogan "A UNE somos nós, nossa força e nossa voz", e essa palavra de ordem pegou em todo o País, sem que nenhuma estrutura de comando a impusesse. Foi uma revolta espontânea das "massas decapitadas" defendendo suas lideranças e desnorteou completamente a repressão. Era uma demonstração cabal de que a UNE clandestina e aprisionada tinha toda a legitimidade do mundo.

No final dos anos 70 a UNE retomou sua trajetória reconstruindo-se "na marra", contra as proibições da decadente ditadura do general Figueiredo. Dei posse em 1979, ao voltar do exílio, ao primeiro presidente da UNE eleito depois da minha gestão. Daí para a frente a UNE pouco apareceu. Mesmo na grande campanha das Diretas-Já os estudantes não se destacaram. O único surto expressivo foi o movimento dos caras-pintadas, que explodiu com grande e surpreendente espontaneidade e que a UNE conseguiu, espertamente, liderar ou, segundo alguns malvados críticos, explorar. Depois disso quase nada aconteceu que chegasse a causar mínimo impacto na opinião política do País. Isso não quer dizer que a máquina da UNE não tenha servido para eleger ex-presidentes. São vários os que seguiram o caminho da chamada "carreira política" e são hoje deputados ou prefeitos, quase todos pelo PCdoB. Bom para eles e bom para o partido, mas isso não deveria ser o principal resultado da história de uma entidade de massas.

Ao longo desses anos tenho feito não poucas palestras em universidades e colégios sobre os eventos, cada vez mais longínquos e mitológicos, de 1968. Sempre há muito interesse pelo passado, porém o debate invariavelmente acaba com a fatídica pergunta sobre o movimento estudantil em tempos mais recentes e sobre que receita propor para recuperá-lo, o que implica desde logo que está perdido. Nesta era Lula se diz que a UNE virou chapa-branca por ter recebido financiamentos do governo. Não acho que receber recursos públicos seja um problema, necessariamente. Para qualquer governo é legítimo apresentar projetos do interesse dos estudantes; o que não se pode é condicionar a posição da entidade a esses recursos.

O problema de representatividade da UNE não começa com o governo Lula, mas fica mais evidente com o recente esforço de mobilizar as bases para um exercício de sutilezas maquiavélicas que não chega a ser entendido por ninguém. A manifestação em Brasília, há poucos dias, pedia a punição para os corruptos, porém defendia o governo, que é, ao ver de todo o mundo, o responsável pela corrupção. Não dá para separar corruptos e não corruptos no governo e no PT, infelizmente, até porque nem o governo nem o partido romperam nitidamente com suas "bandas podres". Tenho plena certeza de que a grande maioria dos que ocupam cargos na administração pública deste governo, assim como a grande maioria dos militantes e dirigentes do PT, é gente honesta e dedicada ao interesse público. Mas, enquanto não houver uma ruptura clara com os comprometidos no escândalo, todos serão vistos como suspeitos. Já dizia o ditador português António de Oliveira Salazar, na sua única frase conservada pela História: "Em política, o que parece, é".

A UNE fica, neste caso como em outros, a reboque do partido que a controla desde a reconstrução, em 1979. O PCdoB tem tido uma postura de apoio irrestrito ao governo e suas políticas. Se alguém contasse em 1968 que um presidente da UNE seria um dia o autor de um projeto de lei para entregar a uma multinacional monopólica uma área de interesse estratégico do País, ninguém acreditaria. Mas foi isso mesmo que o ex-presidente da UNE, hoje deputado e ex-ministro da articulação política Aldo Rebelo, fez com o projeto de lei de "biossegurança", na verdade um projeto de promoção de transgênicos do interesse da empresa americana Monsanto. Era do interesse do governo, em seus acordos com a bancada ruralista, e o líder do PCdoB cumpriu o compromisso. Para ser justo, devo dizer que metade da bancada desse partido votou contra o seu líder maior. Não por acaso, a UNE jamais quis discutir esse tema, que, em outros momentos, teria sido objeto de uma campanha antiimperialista intensa.

O apoio dado pelas direções dos movimentos sociais ao governo, UNE incluída, não corresponde ao sentimento de suas bases e elas sabem disso. Muito antes deste escândalo ético essas bases já estavam profundamente decepcionadas com as políticas conservadoras do governo Lula. Querer mobilizá-las agora para salvar o governo vai ser muito difícil e pode desmoralizar essas direções e os próprios movimentos. A lógica das direções aparentemente faz sentido quando se constata que quem está capitalizando a decepção são as forças mais conservadoras, mas não aceitar o desgaste provocado pela destruição do sonho de mudanças (éticas e políticas) é afundar junto com os que o destruíram.

Na véspera do golpe que derrubou o presidente Allende, no Chile, Santiago amanheceu pichada por uma palavra de ordem que indicava bem o sentimento das massas populares: "Este gobierno es una mierda, pero es nuestro". Naquela tragédia os movimentos afundaram com o governo, mas era uma derrota gloriosa que permitia uma recuperação política futura. No quadro atual o governo, os movimentos e os partidos de esquerda estão comprometendo o futuro. Esperemos que acordem a tempo. *Jean Marc von der Weid, economista agrícola, presidiu a UNE em 1969-1970