Título: O companheiro apresenta suas armas
Autor: Ivan Carvalho Finotti
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2005, Aliás, p. J4

Em 31 de outubro de 1979 uma multidão congestionou o enorme saguão do Conjunto Nacional, que ocupa um quarteirão inteiro no cruzamento da Avenida Paulista com a Rua Augusta, em São Paulo. Além da aglomeração incomum, a situação era curiosa por outro fator: estavam ali para o lançamento de um livro. E, de repente, eles começaram a aparecer. Os antigos companheiros, gente que havia sido presa ainda nos anos 60 e nunca mais fora vista. Apareceram amigos que haviam sido torturados e exilados do País por toda a década de 70. Surgiram, enfim, os velhos companheiros que haviam acabado de pôr o pé no Brasil beneficiados pela lei da Anistia, assinada dois meses e três dias antes. Mesmo assim, dezenas de agentes do Dops à paisana acompanhavam os gestos e as conversas desses subversivos. O grande responsável por essa reunião, o autor da obra, o cara que estava dando autógrafos nos exemplares comprados por essa gente toda na Livraria Cultura, era Fernando Gabeira. O livro era O Que É Isso, Companheiro? e suas 190 páginas, escritas enquanto Gabeira era porteiro noturno de um hotel na Suécia, traziam a história de como ele e outros seqüestraram um embaixador americano em 1969 para trocar pela liberdade de 15 presos políticos, entre eles o ex-ministro José Dirceu. Contava como Gabeira foi preso logo depois e como foi libertado, junto com outros 39 camaradas, em troca de um embaixador alemão igualmente seqüestrado, em 1970. Mas o livro também trazia críticas à esquerda brasileira. Retratava o fracasso da luta armada e já levantava questões éticas, como disputas internas de poder nas células guerrilheiras.

Passados 26, com três mandatos consecutivos como deputado federal nas costas, Gabeira está prestes a completar 50 anos de vida pública. E vai comemorar do jeito que sabe: barulho em forma de livro. "Farei um balanço do declínio da esquerda clássica, culminando com essa experiência que vivemos agora", diz o deputado do Partido Verde. Ainda em fase de pesquisa, a obra terá Brasília como pano de fundo e já tem um título provisório: "Estive naquela cidade". Aos 64 anos, de camisa abacate e gravata abóbora, em seu gabinete naquela cidade, Gabeira recebeu o Aliás para esta entrevista.

Teremos um novo O Que É Isso, Companheiro?

Eu evito essa idéia porque não existe mais o companheiro. Não existe mais a pessoa que escreveu aquele livro e não tenho intenção de produzir um best-seller. Vou fazer 50 anos de vida pública em 2006. Então, a idéia é fazer um balanço sincero. E, como houve uma editora que me convidou para escrever sobre Brasília, farei esse trabalho dos 50 anos de vida pública a partir da experiência em Brasília, refletindo como é que vim parar nisso aqui. Vou tratar muito da cidade, mas não vai ter nenhuma característica de best-seller porque minha vida aqui é uma prisão-albergue. Eu trabalho e vou para casa dormir. Não posso falar da Jeany Mary Corner porque nunca fui a nenhuma das festas.

O senhor vai escrever sobre a crise atual, sobre suas relações com o PT? O que podemos esperar?

Sim, claro. O que mais me incomodou no PT e que eu acho imperdoável, apesar de ser uma pessoa que tende a perdoar, foi o fato de chegar ali no governo, num processo amplo que contou com toda a sociedade e mais especificamente com as pessoas que trabalhavam nos movimentos sociais, e se fechar. Falaram: "Agora somos nós e ninguém se mete aqui". Isso para mim foi uma coisa horrorosa. Senti com muito mais horror na época do que estou sentindo agora essas denúncias de corrupção, não que não considere a corrupção de uma maneira severa. Mas eu não entendo isso. Coloco no nível da patologia política. Para mim, tanto José Dirceu quanto Lula e o núcleo duro do governo são patológicos. São avarentos do poder. Posso dizer hoje que todo o núcleo duro, incluindo Palocci, foi atingido. Mas, se Palocci for substituído, não haverá alteração na política econômica, que poderá ser conduzida normalmente por um economista.

A gota d¿água de sua relação com o PT foi quando o ministro José Dirceu o deixou plantado esperando uma reunião?

Eu já estava decidido a sair. Recebi telefonemas do PT e do próprio Palácio pedindo que eu reavaliasse a situação, "porque era um caminho longo pela frente, o governo estava apenas começando". Eu decidi que não, que tinha de me afastar e estar muito longe desse governo. Não só muito longe como numa oposição a esse governo. Isso para mim era claro. Eu já uma tinha visão moral diferente da deles depois do que aconteceu com os transgênicos. Não foram apenas divergências a respeito da política ecológica, mas profundas divergências éticas. Então, estava mais decidido do que nunca, mas José Dirceu marcou uma reunião para conversar. Sentamos à mesa e Dirceu se levantou: "Espera aí que vou ali na Câmara resolver um problema e já volto". E nessa história levou uma hora e meia. Aproveitei e fui embora. Foi uma boa oportunidade de romper com eles de forma definitiva. Na verdade, eu nunca fui considerado realmente uma pessoa do PT, nem por Lula, nem por José Dirceu. Eles entenderam que estavam integrando um intelectual e, como estão acostumados ao intelectual que respalda o que eles fazem, continua sua atividade, mas não cobra nem obriga ninguém a mudar suas posições, eles entenderam que eu era do tipo inconveniente.

E sua relação com o presidente?

Lula jamais falou comigo. Desde que se elegeu, jamais falou comigo. Porque, se falasse, teria de me olhar no olho. Teria de me explicar por que ficaram tão fechados. Nunca mais, fingiu que eu morri. Queriam me expulsar da História do Brasil me mantendo no PT, completamente incapaz de tomar iniciativa, só seguindo a perspectiva deles. Se eu saísse do PT, eles iriam me condenar ao ostracismo. E os jornalistas tiveram culpa nisso.

Como assim?

Quando eu escrever o livro, a mídia também não vai ficar muito bem. Há diversos jornalistas que se prestam à perspectiva do PT. Então, eles acharam que eu ia cair num ostracismo total, porque estão acostumados a achar que fora do PT não existe vida. Isso porque eles não têm competência para ter vida fora do PT e acham que todo mundo, ao sair do PT, morre. Não é verdade. Você sai e floresce. O PT é um atraso. Agora não é só um atraso. É um caso de polícia.

O senhor tentou falar com Lula?

Nunca pedi audiência com Lula, mas se você faz uma campanha, faz um programa ecológico, se Lula vai ao lançamento desse programa, se ele conhece a posição que a gente tinha sobre transgênicos e se ele vai mudar de posição como mudou, seria razoázel que chamasse a gente e dissesse: "Olha, nós fizemos esse trabalho, mas eu vou ter de mudar, vou ter de abrir. O que você acha?" Mas mudou e não falou comigo, com o MST, com os pequenos produtores, com ninguém. Por isso eles se deram bem com Roberto Jefferson: gostam de malandragem. Mas são malandros mais grosseiros, mais toscos, tanto que vão todos para a cadeia. Não sei se Lula vai para a cadeia, porque está conseguindo uma barreira grande. Mas esse risco sempre existe.

O senhor arriscou a vida para libertar 15 presos políticos, entre eles José Dirceu. Quando o senhor deixou de ver nele um companheiro?

É importante esclarecer: esses seqüestros eram feitos para libertar companheiros presos que estavam sob tortura e tinham importância para a continuidade do movimento. Mas a gente não os conhecia necessariamente. A lista vinha da direção das organizações que participavam do seqüestro. Eu não conhecia José Dirceu pessoalmente nem era o responsável por confeccionar as listas. Era apenas um ajudante, um intelectual com pouquíssimas habilidades militares que resolveu ajudar. E depois, quando voltei para o Brasil, nunca tivemos relação pessoal. Nunca fomos amigos.

Então o senhor nunca sentiu que ele lhe devia algo?

Jamais. Nunca senti isso e, se colocado de novo nas mesmas circunstâncias, faria coisa semelhante. Só não seqüestraria, porque acho que é violento e hoje tenho uma visão crítica disso. Mas, se pudesse de alguma forma tirá-lo da cadeia por causa daquele tipo de delito, tiraria.

Mas não por causado tipo de delito de que ele é acusado agora, certo?

Desse, infelizmente, não poderei cuidar. Ele sempre me deu a impressão de que era um cara muito bem preparado, interessado no que se passava no mundo e, dentro do PT, tinha até uma visão mais avançada. Mas era só impressão. Quando as coisas foram se revelando, ele me pareceu mesmo uma pessoa envolvida em monopolizar o poder. Quase que obsessivamente. Em dizer: "Eu sou o dono do poder. Não quero participação. Se precisar de participação, eu compro". E foi o que fez. "Prefiro um exército mercenário a quadros políticos." Agora, como ele explica para si mesmo a viabilidade de um processo desses, eu não entendo. Não digo a viabilidade em termos de não ser descoberto pela polícia, mas como capacidade de transformação. A única hipótese que me ocorre é: "Às favas com o projeto de transformação; o importante é ficar aqui muito tempo".

Há muitos quadros do PT, petistas históricos, que procuram um novo partido, talvez o PV. O Partido Verde pode se tornar um novo PT?

Eu acho que seria sadio que as pessoas que estão desorientadas com o naufrágio do PT continuassem desorientadas. Porque a desorientação hoje é um ato positivo no meu entender. Ela vai levar necessariamente à reflexão sobre o partido como instrumento e, em segundo lugar, sobre por que o PT naufragou dessa maneira. Eu tenho grande respeito pela integridade que algumas dessas pessoas mantiveram durante o período; isso nos une. Mas, apesar de ser uma medida necessária para as carreiras políticas, é muito simplista ver o PT se destroçar e escolher um outro partido sem se aprofundar nas causas que levaram à destruição do PT nem no nível de cumplicidade que cada um teve com essas causas. Isto é, sem fazer uma autocrítica da experiência coletiva e sem definir sua responsabilidade nela. Sem isso, não se evita que aconteça de novo. Então não acredito que o PV tenha medo de se transformar num novo PT porque as pessoas virão para ele. Ele pode se transformar num novo PT se ele não entender por que razões o PT naufragou.

Há 18 deputados cassáveis e cerca de outros 80 trabalhando nas CPIs. Considerando que há 513 deputados na Câmara, o que fazem os outros 400 desde o início da crise?

Existe um grupo tentando rearticular o trabalho e fazer a Câmara funcionar. Mas existe muito constrangimento em relação aos líderes, uma situação cômica na Câmara. Os três ou quatro líderes do governo estão com a cabeça a prêmio: Sandro Mabel, Paulo Rocha, Janene, Valdemar Costa Neto. Então, se entra um fotógrafo, os outros saem correndo imediatamente. Há um constrangimento até da presença física na mesma mesa. Como é que essas pessoas vão sentar e discutir um caminho se os outros estão atentos à chegada dos fotógrafos para escapar da fotografia?

Essa legislatura acabou, então?

Estamos nos reunindo incessantemente, até em casa de deputado de madrugada, para discutir uma saída. E aos poucos vamos reconduzir a Câmara ao seu caminho normal. Nesta semana, fizemos tudo para que o projeto do salário mínimo fosse votado. Fizemos tudo, inclusive, para que o projeto fosse votado da forma que o governo precisava. Porque não nos interessa nessa luta contra o governo o clima de "quanto pior, melhor". Não nos interessa embaralhar os dados da economia para precipitar a queda do governo. Porque traríamos sofrimento às pessoas e iríamos complicar a tarefa do próximo governo. O objetivo é fazer oposição da forma mais civilizada possível.

E o próximo governo, o senhor arrisca uma previsão?

Na minha opinião, a próxima coalizão para dirigir o Brasil não deve ter um marco ideológico tão grande, mas deve estar mais preocupada com a fronteira ética. Ou seja: apesar das divergências ideológicas, uma vez situados dentro da mesma fronteira ética, nós teremos condições de discutir alguma coisa para o Brasil. Não precisamos mais dessa fantasia "vamos transformar", "nunca na história" e "jamais foi feito". Isso é muito decorrente da visão do PT. Eles supõem que a história começou com eles. Talvez por isso me desprezem. Eles não sabiam que eu estava vindo de mais longe.

E para onde o senhor vai?

Os repórteres, quando ouvem essa resposta, caem de costas: eu sou você amanhã. Meu sonho é ser repórter. É a única coisa que gosto no mundo, sou apaixonado. Possivelmente saio da vida pública, mas não tenho o destino pessoal assim tão definido. Se houver a necessidade de continuar na cena política, pode ser que eu continue.

A CPI pode dar em nada?

Eu acho que a CPI dificilmente deixará de cassar mandatos. A CPI vai cassar mandatos e vai esclarecer dentro de seus limites toda a corrupção que houve. Quando afirmo isso quero dizer que não é uma CPI técnica que utilize todas as possibilidades. Uma CPI como essa deveria ter uma capacidade de uso tecnológico muito maior. E um desprezo um pouco relativo à retórica e a aparecer na televisão. Mas é inevitável. Transformaram a CPI um pouco em Big Brother.

O fato de o senhor ser um parlamentar sui generis, de trazer temas novos, como legalização da prostituição, descriminalização da maconha ou casamento gay, isso tudo ajudou ou atrapalhou sua carreira política?

Eu diria que nem um nem outro. Esses temas foram trazidos da campanha e, portanto, eu tinha uma responsabilidade com eles. O que restou para mim foi examinar como conduzi-los num contexto conservador, sem que, de um lado, houvesse uma ruptura do diálogo e sem que, do outro, houvesse uma folclorização que impedisse qualquer avanço. É surpreendente, mas sou amigo de quase todo mundo, apesar de muitos discordarem de mim. Até a senhora que me alugou apartamento no Rio me disse: "Nossa família gosta muito de você, mas somos contra a maconha".

Mas nunca houve tensões?

Houve um momento de tensão, em 1996, quando importei 4 quilos de semente de cânhamo da Hungria. A planta produz 25 mil subprodutos, como roupas, comida, material de construção etc. Eu conhecia o processo, eles estavam produzindo industrialmente e eu queria trazer para o Brasil para fazermos experiências aqui. O cânhamo é a mesma planta que a maconha, sem o índice de THC que caracteriza a droga. Não pode ser fumado?

Pode até ser fumado, mas só vai dar uma dor de cabeça enorme. Só serviria para masoquistas, não é? O que aconteceu é que eu importei e foi apreendido na alfândega. Eu fui lá retirar, com o atestado que provava que estava legalizado. A Polícia Federal deu a entender que eu tinha importado maconha. Aí houve um escândalo. Algumas pessoas aqui no Congresso se movimentaram com a idéia de cassar meu mandato. Fiquei na minha. O tempo passou, a PF me processou e fui absolvido. Pensei que o governo fosse me pedir desculpas. Fernando Henrique me prometeu, certa vez. Mas ele não teve coragem, não é um homem corajoso. Ou faltou importância. Talvez ele não desse importância. Nem a mim, nem ao tema. Hoje surgem problemas no âmbito do casamento gay e das prostitutas. Mas são problemas localizados entre os católicos fervorosos e os evangélicos.

Falando em evangélicos, o senhor é deputado pelo Rio de Janeiro. Acha que seu Estado merece o casal Garotinho e Rosinha?

Quando você fala deles, parece que estou sendo levado para outro planeta (risos). Mas não é. Esse casal é produto de uma política decadente. Em primeiro lugar, porque utiliza os mecanismos emocionais para se aproximar e ganhar o voto. Em vez de dizer "eu tenho uma compreensão do Brasil e uma perspectiva de transformação para a qual eu te convido a refletir", eles dizem: "Olha, eu acredito num Deus que você acredita também e eu estou mais próximo desse Deus do que você".

E na administração do Estado?

Uma deformação é apresentar os recursos para programas sociais como se fossem uma contribuição própria. Vi a Rosinha na TV dizendo "eu dei leite, eu dei almoço a um real, eu dei etc." Nesse momento, ela simbolicamente se apropriou do dinheiro do Estado, o atribuiu a si própria e transformou um programa social num ato de generosidade pessoal. Se ela estivesse na Europa, seria presa. Você diz para a pessoa que não tem discernimento que aquele dinheiro é seu, uma dádiva sua. É nefasto.

O marketing está hoje incrustado na política brasileira. O senhor acha que há saída sem ele?

Infelizmente teremos de discutir na política o que já foi profundamente discutido na publicidade. Você pode anunciar um produto que não tenha correspondência com a realidade? É correto anunciar alguma coisa suprimindo suas fragilidades e enfatizando só as qualidades? Até onde uma propaganda é enganosa? Sou temeroso da perspectiva de proibir tudo, de voltar atrás. Mas consideradas as circunstâncias de hoje, a deformação que houve... Primeiro os custos astronômicos. Segundo, o estilo altamente manipulador. Duda Mendonça produziu um comercial de mulheres grávidas descendo a colina. Significa que o Brasil vai ter uma outra política sobre o pré-natal? Estamos tratando as mulheres grávidas como a Noruega trata? Não. Elas não estavam ali para exemplificar uma mudança na relação do governo com as mulheres grávidas no Brasil. Estavam para falar de um mundo novo, uma imagem poética que nos leva pela emoção a se identificar com o projeto.

E o presidente Lula?

Lula sempre foi considerado incompetente e despreparado pelos adversários. Então, produziram um comercial em que o Lula está sendo assessorado por intelectuais. Eles deslizam por uma sala com papéis na mão, com pastas, como se pertencessem àquele ambiente. Mas eles foram reunidos no cenário. E você tem a ilusão que eles vão chegar ao governo cheio de projetos para mudar o País. Porque, afinal, estão cheios de pastas e papéis, são intelectuais voltados para estudar a realidade brasileira... Tudo farsa. É importante dizer que todos os outros manipularam também.

Qual o saldo dessa farsa?

O saldo é o maior fracasso histórico de um projeto político no Brasil. A expressão Titanic é importante porque realmente é um fracasso de grandes dimensões, que será lembrado por muito tempo. Estamos assistindo ainda a alguns saltos do navio, pessoas se agarrando na amurada, mas o saldo será o grande naufrágio, a queda do Muro de Berlim do Brasil, mas sem nenhuma glória.