Título: Quando o homem move o mito
Autor: Lilia Moritz Schwarcz
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2005, Aliás, p. J6

O senador José Sarney anda, com raras exceções, estranhamente quieto. Parece ter aconselhado José Dirceu a renunciar, antes de seu depoimento à CPI, mas acabou voltando atrás. Além do mais, nesta semana, subiu à tribuna para pedir "serenidade", assim como buscou separar a figura do presidente Lula do que reconheceu ser um amplo esquema de corrupção disseminado pela máquina do governo. Por outro lado, em entrevista a um programa de TV, fez uma série de revelações sobre seus tempos de presidente. Com a consciência de quem sabe como se constrói (e mantém) um mito, contou segredos - digamos assim - de seu mandato. Lembrou que naquele momento o Brasil pretendia entrar para o clube nuclear, e que os militares haviam inclusive preparado um buraco na Serra do Cachimbo. No entanto, em nome de uma política de aproximação com a Argentina, Sarney teria, já nos tempos de Collor, jogado uma pá de cal no assunto e no tal buraco. Admitiu ainda que a viúva de Costa e Silva foi a Brasília (de ônibus) com o objetivo de pedir um cargo para sua neta, e foi aí que (sem responder se deu ou não o cargo) concluiu: "O poder é uma coisa muito efêmera". Recordou também um episódio, em 1988, quando um cidadão ameaçou jogar um Boeing da Vasp em Brasília. Como a memória é boa companheira, o ex-presidente disse que, apesar do apelo dos seguranças, limitou-se a responder: "Não, o dever do presidente é ficar aqui". Para terminar, admitiu que seu plano econômico, o "Cruzado 2", era "um fracasso"; isso tudo com um jeito de quem conhece as mazelas do presente e olha com experiência para trás. E falta o principal. Sarney está escrevendo um livro de memórias e definiu sua atuação com uma só palavra: "paciência".

Se pensarmos, como Walter Benjamin, que a memória é um passado feito de agoras e que quem lembra esquece, talvez valha a pena reter a imagem que Sarney pretende legar. O estadista equilibrado, o político que reconhece seus erros, o presidente que reflete acerca dos limites do nepotismo; aquele que nunca abandona o barco. A tentativa de criar uma imagem destacada do momento atual não é mera coincidência: trata-se de uma evidente construção simbólica da imagem pública do estadista.

Mas gostaria de acrescentar outro cenário. Quando o leitor for visitar São Luís do Maranhão, tente pedir ao taxista para levá-lo à Fundação da Memória Republicana. Não vai funcionar... Quem sabe possa se referir ao local histórico, onde se situa a tal instituição, também conhecido como Convento das Mercês. Porém, se falhar mais uma vez, arrisque a orientação: "Leve-me ao museu do Sarney!" Nesse caso, não há chance de errar.

Chegando lá, o visitante irá deparar com um edifício majestoso, ou melhor, com um bem público que foi de certa maneira privatizado, quando se transformou em mausoléu para a conservação (e re-criação) da memória de José Sarney. Nesse local, os laços entre a pessoa e a instituição não permitem dúvida, a começar por seu estatuto legal: antes de deixar a Presidência, Sarney doou o acervo à fundação, que, por sua vez, é controlada pela própria família do político.

A sede da entidade não poderia ser mais significativa no sentido de dar grandiosidade à figura. Trata-se de um prédio colonial restaurado, localizado em área de 10 mil metros quadrados no centro da cidade: antes funcionou como convento, depois como hospital e, por último, como sede da Polícia Civil do Maranhão, até a atual reforma, realizada quando Sarney ainda estava na Presidência. A antiguidade do prédio confere legitimidade ao personagem, que passa a ser identificado com o próprio passado da instalação.

O museu conta com dependências e acervos variados que fazem dele uma espécie de gabinete de curiosidades, composto de mapas antigos e algumas obras de arte. Mas o grosso do material é mesmo dedicado à memória de Sarney. No andar superior funciona uma exposição com objetos colecionados pela família - entre vasos, pinturas e até mesmo um carro presidencial -, grande parte dos quais recebidos oficialmente, na época da Presidência. O "centro de documentação" conta com mais de 120 mil textos manuscritos e datilografados, 100 mil recortes de jornais, 80 mil cartas enviadas por populares e 80 mil cartas diversas, além de cartazes, diplomas, despachos com políticos, correspondência pessoal, programas de viagem, cartões de felicitação, originais de discursos, programas ao pé do rádio; isso sem esquecer da correspondência dos tempos em que Sarney era deputado federal, governador, senador, presidente da Arena, presidente do PDS, membro da Frente Liberal e da Aliança Democrática e candidato a vice-presidente da República. Aí está uma longa história política, cercada de um verdadeiro aparelho dedicado à memória de Sarney e sua perpetuação. Nesse espaço os famosos limites entre público e privado se diluem, numa complicada relação de familiaridade e intimidade.

E o melhor ainda está por vir. Na parte externa do prédio existe uma área revestida de mármore negro, que todos afirmam ser destinada ao jazigo do presidente. Onde começa o mito e termina a metáfora, o que é lenda e o que é realidade... ninguém sabe ou ouviu dizer. Tal "espaço da morte anunciada" confere sacralidade à personagem, à semelhança dos famosos "túmulos dos soldados desconhecidos", que só não comportam mesmo o próprio soldado. São vazios em seu interior e repletos de significação e simbolismo na sua exterioridade. Como se vê, quando se trata de instrumentalizar a história, os limites entre República e redenção, privacidade e oficialidade acabam por se esfumaçar, deixando transparecer apenas fatos destacados, datas e heróis. Por sinal, inseridos em um museu como esse, as trajetórias e os meandros da vida de Sarney parecem desfocados, sugerindo a idéia de um tempo vazio e homogêneo. Passado, presente (e até o futuro) surgem de forma teatralizada, como se não existissem conflitos e impasses no mundo da política.

Vivemos numa época obcecada pela memória e marcada pela musealização do cotidiano. Nesse contexto, símbolos de pertencimento social, dados que permitam nobilitar a lembrança e elevar o passado valorizam-se. Por outro lado, um passado congelado é acionado, no sentido de fazer da história uma sucessão de vestígios bem guardados e "naturalmente" colecionados.

Ora, nada há de "natural" nessa atividade, assim como guinadas, eleições e cargos políticos não são da "ordem da natureza" nem se localizam fora do tempo dos homens e da política. A saída é interrogar os documentos, iluminar sua fonte e dimensão social. Longe da idéia de patrimônio cultural, experimentamos, em casos como esse, a celebração de uma certa história e um processo evidente de construção pessoal.

Os passos da criação dessa "representação Sarney" vêm sendo cuidadosamente elaborados. Basta lembrar da sua entrada na Academia Brasileira de Letras, que lhe conferiu imortalidade; do passado transformado em museu e das entrevistas que criam uma imagem oposta a tudo o que vem ocorrendo nestes tempos de crise. Como disse o ex-presidente, "o poder é efêmero". Por contraposição, a memória, quando bem alimentada, há de ser eterna.