Título: A política externa e a crise política
Autor: Celso Lafer
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

A política externa brasileira apresenta fatores de continuidade. Derivam da persistência de algumas características da nossa inserção internacional. Entre elas, a localização na América do Sul e a menor proximidade dos focos de tensão presentes no cenário internacional, a escala continental e a unidade lingüística, a importância de cultivar o relacionamento com os dez países vizinhos, a natureza do nosso contexto regional latino-americano, os cuidados no gerenciamento da forte presença dos Estados Unidos nas Américas e no mundo, as realidades da estratificação planetária do poder, o empenho no multilateralismo político e econômico, o desafio do desenvolvimento. No trato destes temas, com o objetivo de traduzir necessidades internas em possibilidades externas, nosso país vem se valendo dos seus recursos de poder. Na gestão destes recursos e na defesa dos interesses nacionais, a diplomacia brasileira, levando em conta a variedade das conjunturas internas e internacionais, tem, regra geral, procurado seguir a fórmula consagrada pelo Conselho de Estado do Império: "Diplomacia inteligente sem vaidade, franca sem indiscrição, enérgica sem arrogância."

O presidente Lula, seus colaboradores diretos no Itamaraty - o ministro Celso Amorim e o secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães - e a sua assessoria no Planalto anunciaram, desde o primeiro momento, algo radicalmente diferente: o entusiasmado início de uma nova era. Realçaram a ruptura com o passado e, em especial, com a herança do governo FHC. Proclamaram o marco zero da diplomacia brasileira. Buscaram dar uma satisfação ideológica interna, indo ao encontro das expectativas de mudanças alimentadas pelo PT e por outros setores que, em 2002 e no passado, apoiaram a candidatura Lula à Presidência da República.

O desdobramento desta postura se traduziu no ativismo da agenda de uma diplomacia presidencial voltada para todos os quadrantes, na idéia-força de mudar a geografia econômico-comercial do mundo permeada pela latente aspiração de criar uma ordem internacional alternativa, na incessante busca de prestígio, no ostensivo apregoar da liderança do Brasil na região.

Quais têm sido os resultados da nova era - afora o procedimento de imposição de uma discutível lista obrigatória de leitura aos diplomatas, sabatinados subseqüentemente pelo secretário-geral? Observo que na condução de uma política externa é preciso evitar dois riscos opostos: o de subestimar o que um país representa para os outros, pois isto leva à inércia do conformismo; e o de superestimar o seu próprio peso, pois isto deságua na inconseqüência e, por vezes, na insensatez. A experiência histórica mostra que o mundo é inóspito para os países que cometem os dois erros de apreciação acima mencionados e não aquilatam apropriadamente o que precisam e podem obter no plano internacional para o seu desenvolvimento, hierarquizando suas prioridades.

O governo Lula avaliou que poderia somar ao que o Brasil representa no campo estratégico e econômico, como uma relevante potência média de dimensão continental, um ativo próprio: o significado simbólico e a força de atração para outros países, neste tormentoso início do século 21, da biografia do presidente, da sua eleição e da trajetória popular, ética e igualitária do seu partido, o PT. Valorizou, assim, as expectativas de uma democracia de inclusão social a ser conduzida por um governo responsável, dotado de um projeto nacional.

O manejo diplomático do governo Lula dos ativos reais e simbólicos do País não produziu, até agora, para recorrer a uma expressão do ministro Amorim, "eventos sísmicos". O Brasil perdeu a eleição na Organização Mundial do Comércio (OMC) e no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); a obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU parece quase impossível, não obstante inauditos esforços diplomáticos; o Mercosul e o projeto sul-americano patinam a olhos vistos; as parcerias com a China e a Índia não corresponderam às expectativas políticas; o isolamento do nosso país na região é crescente; as relações Sul-Sul quase nada têm que ver com nossas exportações.

Estes insucessos de concepção e execução da política externa e de imperícia no estabelecimento de prioridades vão se agravar com a crise política. Com efeito, está em andamento uma colossal depreciação do que o governo Lula e seus acólitos consideravam o seu patrimônio. Os escândalos até agora revelados pelas CPIs e pela mídia indicam claras transgressões de valores éticos. São graves para a identidade do governo e do seu partido a escala dos procedimentos ilícitos na aquisição do poder (o caixa 2 no financiamento da eleição), no exercício do poder (o "mensalão" para assegurar maiorias parlamentares), e os surpreendentes modos pelos quais as ilegalidades da interconexão do dinheiro com o poder estão semeando dúvidas sobre a probidade da administração.

Num mundo que opera em redes, o prestígio externo sempre tem como um dos seus componentes a credibilidade e a confiabilidade interna. Estas vêm sendo fulminadas pela cisão entre a palavra anunciada e a prática revelada. Esta cisão evoca versos das Cartas Chilenas de Tomás Antônio Gonzaga na sua crítica aos desmandos de um governador do século 18:

"Apenas (...) o nosso chefe/ as rédeas manejou do seu governo/ fingir-nos intentou que tinha uma alma/ amante da virtude".

A diplomacia do governo, além dos seus insucessos, terá de enfrentar, agora, o efetivo deságio da aura identitária da Presidência Lula, que era o seu pretenso ativo. Tenderá a parecer cada vez mais - em sintonia com o que está ocorrendo no plano interno na condução da crise - gabola, sem rumo claro e inconseqüente.