Título: Na turma do avião, poucos elogios e muita queixa contra o 'comissário'
Autor: Guilherme Evelin
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2005, Nacional, p. A8

No que deu aquilo, companheiros? Hoje, dá tristeza, frustração e desesperança. É o que dizem os colegas do ex-ministro e deputado José Dirceu (PT-SP) em uma das jornadas mais fascinantes da sua vida e da história da esquerda no Brasil. Trinta e seis anos depois de serem libertados junto com Dirceu - em troca do resgate do embaixador americano Charles Elbrick, seqüestrado em uma ação espetacular da resistência armada à ditadura militar, da qual participou o hoje deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) -, a maior parte dos remanescentes do vôo do Hércules C-130 da Força Aérea Brasileira, prefixo 2456, que os levou para fora do Brasil, critica duramente a obra política do antigo parceiro de exílio. "O PT copiou os piores defeitos da direita populista. Seu grande ideólogo virou o Adhemar de Barros (que popularizou o rouba, mas faz) e o Maluf, o seu grande espelho", diz o o escritor Flávio Tavares, 71 anos, um dos 13 presos políticos retratados na Base Aérea do Galeão na tarde de 6 de setembro de 1969, pouco antes de o Hércules decolar rumo ao México. Célebre, a foto ficou arquivada na memória nacional como uma das imagens dos anos de chumbo. Tavares foi o autor da sugestão, acatada, com evidente orgulho, por Dirceu, para que os presos exibissem as algemas no momento em que o fotógrafo da Aeronáutica se aproximou.

"Creio que foi a primeira e única vez em que o José Dirceu atendeu ao que eu lhe disse na vida...", brinca Tavares. Ele é cáustico na avaliação sobre o partido que Dirceu organizou e levou ao poder . "Passei 18 anos na Argentina. Até essa crise, acreditava que o PT era a reedição do peronismo, mas sem corrupção. Mas o PT, além das bases, traiu também seus adversários, aqueles que tinham vergonha de criticá-lo porque achávamos que eles eram honestos", afirma o escritor, que é autor da ficção política O Dia em que Getúlio Matou Allende.

Dos 14 companheiros de vôo de Dirceu até o México (mais 2 se juntaram em escalas no Recife e Belém), 6 morreram: Luís Travassos, Onofre Pinto, Rolando Fratti, José Leonardo Rocha, Ivens Marchetti e Gregório Bezerra. Dos sobreviventes, a única mulher do grupo, Maria Augusta Carneiro, trabalha hoje como ouvidora-geral da Petrobrás, no Rio. Foi a única que também não quis dar entrevista. Os demais concordaram em falar sobre o antigo companheiro e a crise no governo.

"Se o Dirceu teve responsabilidade na compra de apoio de deputados, vai ter de pagar. Ele se defendeu, brilhantemente, mas acho difícil as coisas serem compartimentadas", diz Ricardo Vilas , músico na França. Prestes a completar 56 anos, ele era o mais jovem do grupo em 1969 e foi o último a ingressar na lista de presos trocados por Elbrick. Filho de um funcionário de organismo internacional, foi um dos dois, além de Tavares, a não ir para Cuba fazer treinamento de guerrilha. Preferiu ir para Paris.

Da convivência de um mês e meio no México, Vilas diz guardar do ex-todo-poderoso chefe da Casa Civil a imagem de "um cara legal, alegre e com carisma". Cauteloso ao falar sobre o envolvimento direto de Dirceu com esquemas de corrupção, ele, porém, não hesita em apontar a gestão do PT pelo grupo do ex-ministro como uma das causas da crise. "A democracia interna no PT não existiu. Um grupo assumiu o poder dentro do partido e o exerceu nem sempre de uma forma muito ética para chegar à Presidência", diz Vilas. Em tom de lamento, ele profetiza o saldo final da crise: "O governo Lula foi um passo à frente no Brasil, mas vai haver agora um recuo grande."

O centralismo democrático também foi a razão de afastamento do PT de José Ibrahim, 58 anos, que foi do núcleo fundador do partido. "No PT, as coisas sempre foram decididas por uma meia dúzia. Foi um modelo transportado para os sindicatos, os movimentos sociais e para o governo também", critica. Ele rompeu com os petistas em 1985. Fazia na ocasião uma crítica à esquerda. Depois, participou da criação da Força Sindical. Na última eleição, votou nos dois turnos em José Serra. "Nunca votei no Lula para presidente. Sabia no íntimo que esse troço não podia dar certo", diz.

No fim dos anos 60, como presidente do sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, foi uma espécie de Lula. Comandou uma greve e, em seguida, se integrou à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Acabou preso na perseguição implacável do regime ao grupo de Carlos Lamarca. Em Cuba, treinou guerrilha com Dirceu. "Ele era irascível, pavio curto, mas não tivemos entreveros pessoais", lembra Ibrahim, que acha que a responsabilidade do ex-ministro deve ser compartilhada com Lula. "O Dirceu sempre foi fiel ao Lula", afirma ele, que se dedica a projetos sociais da Igreja Católica na periferia de São Paulo.

Outro sindicalista a ir para a luta armada contra o regime militar, mas nas fileiras da Ação Libertadora Nacional (ALN) , o sergipano Agonalto Pacheco da Silva também atribui a Lula a maior parcela de culpa no escândalo. "Ele é o presidente, é quem tem a força", diz. Aos 78 anos, morador de Aracaju, onde ainda milita em movimentos de bairro, Agonalto é um velho comunista que diz ter também uma velha opinião sobre o governo Lula. "O presidente era líder da oposição e foi para o governo sem levar as forças que o apoiavam. Isso é traição e mostra quem é quem", afirma.

FIÉIS

Num grupo heterogêneo, formado a partir de uma lista "ecumênica", segundo um dos responsáveis por sua elaboração, o jornalista Franklin Martins, um dos articuladores do seqüestro de Elbrick e hoje comentarista político da Rede Globo, há também os fiéis a Dirceu. "Não acredito que ele se envolveu em atos de corrupção. Ele pode ter cometido erros políticos, como acontece em todos os partidos", diz Mario Roberto Zanconato, 60 anos, o Xuxu, médico em Diadema. Zanconato não aparece na foto do Galeão, por ter embarcado em Belém. Era dirigente da ALN em Minas Gerais e embarcou no Hércules, assoviando, baixinho, a Internacional. "Fiz para levantar o ânimo do pessoal", rememora Xuxu.

Quem também continua aliado ao ex-ministro é Ricardo Zarattini, 70 anos, que militava na ALN. Suplente do próprio Dirceu na Câmara, Zarattini foi seu assessor no governo."O Zé cometeu erros políticos, mas ele não participava do dia-a-dia das finanças do partido. Acompanhei por 13 meses a sua rotina na Casa Civil e vi que ele não tinha tempo para respirar", diz Zarattini, que destoa ao se manter otimista sobre o futuro das esquerdas no Brasil. "O significado da eleição de Lula vai se manter. A força dos trabalhadores sobreviverá. Se não for pelo PT, vai se canalizar para algum outro projeto político."