Título: Corruptos com voracidade russa
Autor: Steven Lee Myers
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2005, Internacional, p. A22

MOSCOU - Um empresário russo constituiu recentemente uma empresa para fornecer equipamentos para prédios de apartamentos e de escritórios. Apesar do boom da construção civil, ela quase naufragou. Quase. Recentemente dois intermediários deram um jeito na concorrência por contratos de um governo regional. Ele diz que desde então recebeu quatro novos contratos e espera mais. O sucesso tem seu preço, porém. Ele pagou propinas da ordem de 5% a 10% de cada contrato. A maior, até agora, foi de US$ 90 mil.

O valor de cada propina foi trabalhado numa calculadora de mesa para evitar qualquer rastro de papel. Ele não gostou, mas diz que pagar propina é um custo inevitável para fazer negócios na Rússia de hoje. "Se você quer ser competitivo, tem de jogar o jogo", diz ele, concordando em falar numa extensa entrevista com a condição de que nem ele, nem sua empresa, nem o governo regional fossem identificados. Ele teme dificuldades legais, ser ferido ou até morto. "Isso costumava se chamar suborno", acrescenta. "Agora, chama-se simplesmente fazer negócios."

O suborno não é coisa nova na Rússia, com certeza, mas segundo várias pesquisas e entrevistas recentes com dezenas de russos, ele aumentou de escala e alcance nos últimos anos sob a presidência de Vladimir Putin, de tal forma que hoje atinge quase todos os aspectos da vida russa.

Manifestantes anticorrupção e até mesmo algumas autoridades governamentais têm advertido com insistência que a corrupção penetrou de tal forma o governo que pode colocar em risco os progressos alcançados pela Rússia desde o desmantelamento da União Soviética, há 14 anos. A Fundação Indem, uma organização de pesquisa em Moscou que tem realizado um esforço enorme para medir a corrupção no país, estimou, no mês passado, que os russos pagam mais de US$ 3 bilhões em suborno anualmente e empresas pagam US$ 316 bilhões - quase 10 vezes a estimativa de sua primeira pesquisa, há apenas quatro anos. A pesquisa revela que o total é mais de duas vezes e meia o que o governo arrecada em receita orçamentária. Isso significa que quantidades imensas da riqueza da Rússia escoam por um submundo sombrio de funcionários corruptos - não declaradas como renda, não tributadas pelo governo e indisponíveis para investimentos sociais ou econômicos.

"A fraqueza, ineficiência e corrupção de todos os ramos do governo são os principais obstáculos para um maior progresso das reformas da Rússia", declarou em junho um relatório da Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OCDE) encomendado pelo governo russo.

Outras pesquisas também classificam a Rússia entre os países mais corruptos do mundo, colocando a antiga superpotência ao lado de países em desenvolvimento.

A Transparência Internacional, instituição que fiscaliza a corrupção em escala mundial, diz em seu último relatório que a Rússia está seguindo o caminho de países como a Nigéria, o Azerbaijão e a Líbia - ricos em petróleo, mas afundados na corrupção.

Grigori A. Satarov, presidente do Indem, diz que o crescimento recente da corrupção se alimenta das deficiências das estruturas estatais ainda esclerosadas da Rússia, herdadas do passado comunista. Mas ele culpa também as políticas de Putin que enfraqueceram o império da lei.

O combate à corrupção, diz Satarov, requer três condições: mídia noticiosa livre, uma oposição política vibrante e um Judiciário realmente independente. Sob Putin, diz ele, o Kremlin enfraqueceu todos. Para Satarov, o pior é que em todo esse tempo Putin não fez nada para mudar a situação.

A corrupção está inchando em especial para as empresas, juntamente com as quantias que lhes são exigidas - que segundo estimativa do Indem, alcançaram uma média de US$ 135 mil - um salto de 13 vezes sobre 2001.

Satarov diz que a crescente pressão sobre as empresas reflete uma expansão do papel do Estado na economia durante a presidência de Putin.

Para Satarov e outros, casos que ganharam destaque, como o cerco jurídico à companhia petrolífera Yukos, ressaltam menos a determinação do governo de eliminar a corrupção do que seu desejo de controlar ativos econômicos valiosos.

A verdade é que a condenação do ex-presidente da Yukos, Mikhail Khodorkovski, por acusações de evasão fiscal que ele e seus defensores consideraram politicamente motivadas pode ter causado um efeito oposto.

Segundo um empresário muito rico e destacado de Moscou, que falou na condição de anonimato temendo um processo ou uma retaliação política, assim como os outros entrevistados, as propinas se tornaram cada vez mais uma necessidade tanto para ganhar contratos, como para manter afastados inspetores e procuradores.

A magnitude e alcance desse tipo de corrupção na Rússia a diferencia de seu passado recente, segundo o empresário moscovita.

Nos primeiros anos da transição pós-soviética da Rússia, o medo persistente de um retorno do controle soviético e um anseio otimista e romântico por uma democracia normal limitaram, em certa medida, a corrupção."Agora não há mais românticos e o velho medo já não está presente", diz ele.

Uma pesquisa recente do Banco Mundial mostra que 78% das empresas na Rússia declararam ter pago propinas. Outras pesquisa, esta do Conselho Consultivo de Investimentos Estrangeiros, criado em 1994 pelo governo russo e grandes corporações estrangeiras, revela que 71% delas consideram a corrupção o pior obstáculo ao investimento estrangeiro.

Satarov informa que um importante empresário lhe contou que tem de pagar propinas mensais a cinco ministros federais. Metade dos lucros do empresário vai para propinas, relata Satarov. "Quando chegar a 70%, vou fechar a empresa", disse o empresário.

Um consultor de negócios que até recentemente trabalhava em projetos de desenvolvimento econômico da União Européia em Kaliningrado e Moscou disse que teve de suportar vários encontros com autoridades que pediam dinheiro, presentes ou a contratação de algum parente sem qualificação profissional.

Numa entrevista, o consultor, que só aceitou falar sobre isso se não fosse identificado temendo contratempos, disse que era preciso entender a corrupção no contexto do governo russo. "A corrupção não é um vírus infectando o sistema", explicou, dizendo que era assim que a corrupção é vista na Europa ou nos Estados Unidos. "É o próprio sistema."

De fato, o modo como a Rússia evoluiu de seu passado soviético fez com que, para muitos, pagar "uma coisinha" já nem seja considerado propina.

A propina é vista mais como uma tarifa para resolver problemas aparentemente insolúveis ou superar demoras burocráticas que suplementa a renda magra de funcionários públicos que, não fosse isso, seriam honestos.

"O erro não é deles. O governo é incapaz de proporcionar um meio de vida decente", diz Yaroslav Lissovolik, economista-chefe do Grupo Financeiro Unido. Ele teve de pagar uma propina - "dois dólares", disse - para receber os resultados de testes de laboratório numa clínica estatal, onde a assistência médica é gratuita apenas em teoria.

O relatório da OCDE conclui que as autoridades públicas realmente complicaram deliberadamente leis ou regulamentos para aumentar as oportunidades de corrupção. Ou, como coloca um empresário da construção civil: "A lei é como a Bíblia. Eles a interpretam como querem."

Um empresário americano casado com uma russa conta seu exemplo pessoal. Ele diz que pagou quase US$ 1 mil de propina para resolver um impasse insolúvel envolvendo uma filha recém-nascida.

Ela não poderia receber passaporte russo, a menos que fosse registrada na polícia local. Mas só poderia ser registrada se tivesse passaporte. "Esse problema perfeito foi resolvido com uma soma maior do que eu gostaria de lembrar", diz ele, concordando em contar a história se não fosse identificado por causa das leis americanas que proíbem o pagamento de propina.

Por conta da necessidade, pagar propinas se tornou uma prática aceita. As propinas se tornaram quase obrigatórias, por exemplo, para a admissão em universidades russas, mesmo aquelas que supostamente não deveriam custar nada aos alunos qualificados. O estudo do Indem estima que US$ 583 milhões são gastos anualmente em propinas a reitores, professores e outros envolvidos em garantir a admissão. A fundação, junto com a Escola Superior de Economia de Moscou, estima que alunos pagam propinas de US$ 30 mil a US$ 40 mil para entrar nas universidades de maior prestígio.

Jovens em idade de alistamento militar também pagam rotineiramente para livrar-se, por razões médicas ou outras, de um serviço militar tumultuado pela guerra na Chechênia e por uma forma particularmente odiosa de maltratar os novos recrutas. Um jovem de Yekaterinburgo disse numa entrevista que a taxa vigente na Rússia central era de US$ 1.500, e ele e vários colegas pagaram com satisfação. Em Moscou, dizem que a taxa é de US$ 5 mil. Segundo o Ministério da Defesa, pouco menos de 10% dos homens aptos são alistados.

A polícia tem a reputação de ser a instituição mais corrupta. Serguei S., advogado de um conhecido escritório de advocacia, lembrou uma experiência recente em que sua namorada estava ao volante em Moscou e, completamente bêbada, quando um guarda fez sinal para o carro encostar. Ela evitou a prisão depois que Serguei foi a um caixa automático, escoltado pelo guarda, e sacou US$ 300.

"A coisa mais horrível é que tudo isso é absolutamente normal", diz ele, só concordando em discutir a experiência se nem seu sobrenome nem o nome da firma fossem revelados.

A pesquisa do Indem identifica uma tendência positiva: o número de russos dispostos a pagar propina caiu desde 2001, sugerindo um crescimento da frustração popular com as solicitações. Mesmo assim, 53% dos pesquisados disseram que pagariam propina.

Os críticos de Putin, e mesmo alguns partidários, acusam o governo de estar fazendo pouco para combater de verdade a corrupção porque ela se estende aos escalões superiores do governo, algo que o próprio presidente tem admitido.

"O Estado como um todo e os órgãos de aplicação da lei, infelizmente, ainda são assolados pela corrupção e ineficiência", disse Putin numa entrevista à TV estatal no ano passado. A corrupção, acrescentou, atinge os "mais altos escalões, onde estamos falando de centenas, dezenas de milhares, talvez milhões" de dólares.

Alexander Y. Lebedev, um rico financista e membro da Câmara Baixa do Parlamento pelo partido pró-Putin, Rússia Unida, disse numa entrevista que a corrupção crescerá enquanto não forem adotadas medidas drásticas, como o seqüestro de bens no país e no exterior. "Há vice-ministros com casas e iates", disse ele. "Conheço ministros que estão milionários."

O governo Putin não ignorou completamente o problema. Ele anunciou uma série de medidas modestas, aumentos salariais para agentes da lei e de outros organismos de segurança e o endurecimento das penas para crimes aparentemente pequenos, como emitir um passaporte falso.

Este último é uma conseqüência da onda mortífera de ataques terroristas em agosto e setembro do ano passado. Dois aviões de passageiros explodiram em pleno vôo em 24 de agosto, matando 90 pessoas, depois que uma propina de US$ 34 permitiu que pelo menos um dos dois terroristas suicidas entrasse a bordo no aeroporto de Moscou.

"As pessoas naqueles aviões não foram vítimas apenas do terrorismo", diz Yelena A. Panfilova, diretora do escritório da Transparência Internacional em Moscou. "Foram vítimas da corrupção." Mas, por chocante que tenha sido na época, diz ela, a revelação não a surpreendeu.

Quando a Transparência Internacional tentou registrar seu escritório russo em 2000, um funcionário do Ministério da Justiça pediu uma "tarifa" de US$ 300 para corrigir supostos problemas no requerimento que, segundo Panfilova, não existiam. "Eu disse: `Você sabe quem nós somos?¿"