Título: Aborto vem perdendo status de crime
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2005, Vida&, p. A26

Algemada na cama do hospital, esperando o estancamento da hemorragia para ser presa, aos 22 anos a maranhense Regina (nome fictício) entrou em três estatísticas contraditórias do País: foi uma entre o 1 milhão de mulheres que interrompem a gestação todos os anos, segundo estimativas de especialistas, uma das 238 mil atendidas a cada 12 meses pelo Sistema Único de Saúde (SUS) com complicações decorrentes desse aborto, de acordo com o Ministério da Saúde, e um entre os 11 processos criminais contra mulheres pela prática no Estado do Rio desde 2000, conforme dados de levantamento inédito sobre como o aborto, crime punível com 1 a 3 anos de detenção no Código Penal, aparece no Judiciário. A pesquisa, chamada Aborto e Direitos Humanos, feita pela organização não-governamental Advocaci, encontrou nos últimos cinco anos 300 registros policiais pela prática dos artigos 124, quando a mulher provoca o aborto nela mesma, e 126, quando consente que outros o façam. Os números resultaram em apenas 17 processos criminais na Justiça do Rio: 11 contra mulheres, 5 contra médicos ou parteiras e 1 por aborto sem permissão da mulher.

Levantamento feito pela reportagem em outros Tribunais de Justiça pelo sistema de buscas online disponível mostrou uma realidade semelhante, com poucos processos, falta de provas, arquivamentos e acordos para a suspensão do caso.

Também desde 2000, o Tribunal de Justiça (TJ) do Rio Grande do Sul recebeu 13 casos - 4 deles de auto-aborto. Em Minas, o TJ apontou 19 processos, sendo 7 contra mulheres. No Distrito Federal, só um por auto-aborto e quatro contra médicos. No TJ da Bahia não foi encontrado nenhum. Somando todos eles, houve uma condenação para um médico e nenhuma para a mulher.

"No fundo, estamos vivendo uma panacéia. Todos sabemos que as mulheres fazem e sempre fizeram abortos. O número de processos é insignificante. Em decorrência dessa criminalização que não têm efeito e dessa penalização que não existe, temos as mortes maternas e as internações. Esses efeitos negativos são muito piores", afirma a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias.

"Quando, em 1940, o legislador criminalizou o aborto, ele tinha uma conotação histórica, e mesmo assim admitiu exceções, para salvar a vida da mãe e em caso de estupro. Parece que a questão está solucionada, mas não está", completa.

Pelas análises preliminares da Advocaci, os processos, em números insignificantes como destaca a desembargadora, parecem resvalar com mais intensidade em um único perfil de mulheres: negras, pobres, com pouca escolaridade, entre os 18 e 30 anos e moradoras da periferia da região metropolitana do Rio. Exatamente onde ficava a casa de onde, aos três meses de gravidez, Regina saiu às pressas para o pronto-socorro com dor e sangramento.

Na noite anterior, havia tomado um comprimido de Cytotec, remédio com efeito abortivo, e inserido outros dois na vagina. Não pensava que pouco tempo depois estaria ouvindo gritos de assassina, proferidos pela médica que a atendeu e em seguida a denunciou - atitude hoje proibida por uma norma do Ministério da Saúde. "Ela dizia que eu ia ser presa. Me deixou com soro na cama. Fiquei na sala até que me deu vontade de ir ao banheiro. Quando sentei no vaso, o feto caiu. Chamei a médica", conta Regina. "Ela nem me ouviu. Disse que eu queria matar o feto", conta.

Mãe de um bebê de nove meses e ainda amamentando, ela saiu do hospital após a curetagem direto para a delegacia. Foi denunciada por homicídio qualificado. Passou dois meses presa no Complexo Penitenciário de Bangu.

AMBIGÜIDADE

Sem conseguir avisar sua família, Regina se perdeu do filho por uns meses - ele chegou a parar nas mãos de um casal desconhecido. A assistente social do hospital resolveu procurar a ajuda jurídica. O Ministério Público pediu a desclassificação do crime de homicídio para crime de aborto - o que foi aceito pelo juiz e permitiu que ela respondesse em liberdade, enquadrando-se na Lei nº 9.099/95, que trata dos crimes de menor potencial ofensivo, com pena de até 1 ano, e tem sido usada para casos de aborto.

Tudo isso se passou há cerca de dois anos. Hoje, Regina fez um acordo no qual precisa comparecer periodicamente ao cartório, por mais dois anos. Está livre e de volta à sua terra natal, no Maranhão, onde tenta procurar emprego.

"Com essa lei, acontece o benefício da suspensão condicional do processo. A mulher precisa se comprometer a não mudar de domicílio, ter atividade lícita e comparecer a cada dois meses no cartório. Com isso, na prática, as mulheres não vão mais à julgamento por aborto. Nesse acordo, depois de dois anos, o processo é extinto", explica a promotora de Justiça de Defesa da Saúde de Belo Horizonte, Josely Ramos Pontes. "Na prática, a lei praticamente despenaliza o aborto. O problema é que também tira o foco da discussão, porque parece que do ponto de vista jurídico já é uma questão superada."

Essa tendência do Judiciário foi apontada pela socióloga Danielle Ardaillon em sua tese de doutorado. Nela, a socióloga analisou 765 inquéritos sobre aborto na Justiça de São Paulo entre 1970 e 1989, chegando à conclusão de que somente 13% foram a julgamento e apenas 4% tiveram condenação. Para Danielle, ocorre no Brasil um discurso da criminalização, com o aparato policial e o constrangimento das denúncias, que, no entanto, não penaliza.

"Aborto é um crime raramente punido quando as acusadas são as gestantes, levemente penalizado no caso das parteiras, enfermeiras e outros agentes e pouco punido mesmo quando eles provocam a morte das gestantes. Não se trata de simples impunidade. Há um paradoxo que merece atenção. Há no caso do aborto um enorme investimento social na sua proibição, leis, polícia, prisões, associado à pouca insistência na sua penalização de fato. Essa constatação autoriza a hipótese de que a sua punição não interessa realmente à sociedade."