Título: Lei na França pôs fim aos problemas de saúde pública
Autor: Flávia Varella
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2005, Vida&, p. A26

Dezenas de mulheres morrem por ano em decorrência de abortos praticados em clínicas clandestinas ou em casa. Centenas ficam com seqüelas graves, como a infertilidade. Um número ainda maior, já na casa dos milhares, procura os hospitais públicos para tratar de complicações, como hemorragias e infecções, tornando o aborto não só causa de tragédias pessoais, mas também uma das razões do crescente rombo financeiro do sistema de saúde. Esse balanço descreve à perfeição o que acontece hoje no Brasil. No entanto, foi feito há 30 anos. Ele resumia a situação na França no momento em que o país, como o Brasil agora, discutia a descriminação do aborto. Hoje as francesas não morrem mais por conta de abortos malsucedidos (a média é de uma morte a cada dois anos) e as internações por complicações médicas associadas deixaram de ser um problema de saúde pública. A legalização foi aprovada pela Assembléia Nacional depois de um debate acirrado, marcado por baixarias (veja ao lado), e promulgada em 1975.

Para comemorar a data, vários estudos foram publicados na tentativa de analisar o que ocorreu nestes 30 anos, o que mudou. Essas pesquisas respondem a muitas das questões que se colocam agora no Brasil. Uma delas é sobre o efeito da legalização na freqüência com que as mulheres se decidem por interromper a gestação. O número de casos se manteve praticamente o mesmo antes e depois da mudança da lei. A taxa na França continua por volta de 14 abortos por grupo de mil mulheres. (No Brasil, a estimativa é de que seja o dobro.) "Estima-se que 40% das francesas passaram ou passarão por um aborto na vida", nota um dos estudos mais amplos, feito pelo Instituto Nacional de Estudos Demográficos (Ined) com o Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm).

Como a legalização se deu num contexto em que o governo e entidades feministas se empenhavam na difusão de métodos contraceptivos, os franceses esperavam que a freqüência de abortos caísse. Mas não foi o que aconteceu. A popularização da pílula fez que diminuíssem os casos de gravidez não desejada. De todas as mulheres que ficam grávidas hoje, um terço não queria. Antes era quase a metade. O número de abortos, porém, não caiu porque as mulheres surpreendidas por uma gestação inoportuna passaram a optar cada vez mais por interrompê-la.

A maioria se precavia e atribui a gravidez a uma falha do método anticoncepcional. O problema mais freqüente costuma ser o esquecimento de uma ou algumas das pílulas que deveriam ser tomadas diariamente. "Quanto mais a mulher se protege, mais dificilmente ela aceitará o fato de que a contracepção não funcionou e maior a chance de ela se decidir pelo aborto", explica Nathalie Marinier, da organização Planning Familial, que desde 1956 defende o planejamento familiar na França.

ESTIGMA

As pessoas que se opõem à interrupção voluntária da gravidez - é assim ou pela sigla IVG que o aborto passou a ser oficialmente chamado na França - temem que a descriminação e o acesso facilitado ao aborto banalizem o procedimento, que ele se torne uma alternativa à contracepção na cabeça das mulheres. O exemplo da França mostra que isso também não ocorreu. "O aborto deixou de ser um tabu, mas nenhuma mulher fala disso abertamente. Continua a ser algo estigmatizado. Definitivamente, o aborto não será jamais algo anódino. É sempre uma catástrofe na vida de uma mulher. Ela pode se sentir aliviada, mas nunca terá orgulho de ter feito", afirma Michèle Ferrand, uma das pesquisadoras do Ined.

De acordo com os pesquisadores franceses, a decisão de abortar nada tem a ver com um ato egoísta. "Ela traduz a atenção dada às condições de acolhida à criança", concluíram os autores do estudo. Para eles, a legalização do aborto e a banalização da contracepção permitiram a passagem de uma "maternidade forçada a uma maternidade por escolha". Sem isso, concluem, provavelmente as mulheres não seriam hoje 46% da força ativa do país e pessoas economicamente independentes.

A transformação, porém, não foi feita sem traumas. Como no Brasil hoje, a discussão foi acirrada. A Igreja era contra.

Organizações "pró-vida" faziam ruidosas manifestações. Durante a discussão na Assembléia Nacional do projeto de lei apresentado pelo governo, que era de direita, deputados colocaram no alto-falante os batimentos cardíacos de um feto e comparavam a legalização do aborto ao genocídio dos nazistas. A lei foi aprovada por 284 votos a favor e 189 contra.