Título: O lado bom do Copom e de Lula
Autor: Marco Antonio Rocha
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/08/2005, Economia & Negócios, p. B2

Façamos aqui uma proposição provocativa - e até temerária, dado o momento político: o Comitê de Política Monetária (Copom) e o presidente Lula prestaram, até agora, inestimável serviço à Nação, principalmente com vista ao futuro. Partamos para a fundamentação dessa esquisitice opinativa, antes que o leitor atire fora este artigo, cobrindo o autor de impropérios.

Mas por partes.

Primeiro, o Copom. O exacerbado conservadorismo desse órgão já se tornou peculiarmente irritante e, pior, desconcertante, uma vez que legiões de analistas da economia nos asseguram que há margem para um relaxamento na política de juros, sem risco de descontrole inflacionário e com reais benefícios para as atividades e para a redução da relação dívida/PIB.

Então, que raio de bom serviço estaria o Copom, com sua insistência, prestando ao País?

É de um tipo de pedagogia jamais encetada neste país.

Gerações de brasileiros nunca souberam o que era viver sob disciplina continuada e rigorosa na administração da política monetária, ou se havia algum benefício a extrair disso, ou, ainda, se havia alguma relação entre esse aperto e a marcha da economia.

E o que a atual geração está vendo e aprendendo?

Está vendo que, aos poucos, esse rigor, exatamente por ser disciplinador e previsível, vai infundindo confiança e segurança nos agentes econômicos, vai reforçando a convicção de que não teremos mais iniciativas exóticas ou heterodoxas, vai restaurando a possibilidade e a capacidade de empresas e famílias poderem planejar suas vidas - não para os próximos 30 anos, como possivelmente fazem os chefes de família suíços, mas, pelo menos, pelos próximos seis meses, digamos. Considerando que vivemos num país onde "até o passado é imprevisível", como ironizou o ex-ministro Malan, mesmo essa exígua previsibilidade de que já dispomos é um enorme avanço.

Provavelmente, ninguém contestará que a "teimosia" do Copom tem contribuído para reconstruir a noção de que someone is in charge, alguém está mantendo o trem nos trilhos, por mais flechas que a indiada atire e por maiores que sejam os solavancos políticos. Ibrahim Eris, ex-presidente do Banco Central (BC), crítico dos juros altos e da pesada carga tributária (como todo mundo, e nós também), dizia no jornal Valor que "enquanto a crise política ficar viva não se pode pedir ousadia para o BC. Poderia parecer uma decisão política e ser um desastre para a credibilidade da instituição".

Concordo e discordo. De fato, não se pode pedir ousadia para o BC. Mas não apenas "enquanto a crise política ficar viva", e sim por muitos anos, ou, pelo menos, até que a sociedade brasileira incorpore de vez a noção simples de que contas públicas têm de ser equilibradas, dívidas têm de ser pagas, consumismo tem de ser controlado, ninguém (muito menos o governo) deve gastar mais do que pode. Disciplina e rigor monetários são fundamentais para a construção de um País sério, onde as pessoas queiram, de fato, esperar e exigir responsabilidade dos seus governantes, como estão fazendo agora, mais do que nunca.

E a segunda página desse manual pedagógico é que essa disciplina e rigor monetários não matam, necessariamente, a atividade econômica. Com uma brutal taxa real de juros há bastante tempo (agora na casa de 13% ou 14% ao ano), a economia está crescendo, com menor ou maior ímpeto, influenciada muito mais por outros fatores do que pelos juros. Tomemos a seqüência de variações trimestrais do PIB desde o quarto trimestre de 2003, até o primeiro trimestre de 2005, no acumulado do ano, sobre o mesmo período do ano anterior: 0,5%, 4%, 4,6%, 5%, 4,9%, 2,9% (fonte: IBGE). No primeiro e segundo semestres deste ano houve queda, no terceiro deve se verificar alta e no quarto, também. As previsões sobre o PIB de fechamento do ano já estão em alta. Então, a atividade aumenta e diminui, mas sempre crescendo. Poderia dar um salto, bastava o governo cortar a Selic pela metade. Mas por quanto tempo? E depois? De quanto seria o mergulho e por quanto tempo?

Antes de permitir um aumento de velocidade da economia, porém, é preciso tirar alguns obstáculos sérios da estrada. Simplificando: reduzir a relação dívida/PIB para níveis menos ominosos, aumentar as reservas cambiais para níveis mais auspiciosos. E isso demora, mas é nisso que o atual governo tem estado empenhado, com muita pertinácia, altamente pedagógica.

Agora, o presidente Lula. Qual o prestimoso serviço com que tem brindado o País?

Numa simples frase: o de ter respaldado até agora, até com obstinação, isso que, mais do que uma política monetária e uma estratégia econômica, é um processo pedagógico que deixará sua marca na evolução deste país, seja qual for o desfecho, para Lula e para este governo, da atual crise política.

Este artigo estava sendo escrito na sexta-feira sob os efeitos, no mercado, de declarações de Buratti (então ainda não confirmadas) a respeito de repasses de caixa 2 para campanhas do PT, por intermédio do ministro Palocci, na época em que era prefeito de Ribeirão Preto. Não nos surpreende. O PT desenvolveu essa tecnologia de "expropriação" financeira em diversas prefeituras e não vemos por que a de Ribeirão não seria "abordada" pelo voraz Delúbio.

Aqui vai uma aposta. Se a confirmação disso derrubar o ministro Palocci, o que pode ou não já ter acontecido nesta segunda-feira, a aposta é que nada mudará na condução da política econômica e da política monetária.

Em que se fundamenta essa aposta?

Na sensação de que o presidente Lula não apenas deu carta branca a essa política, o que tem ficado mais do que claro. Ele também aposta nessa política. E, por isso, a tem garantido, em muitos momentos, contra muita gente, inclusive velhos companheiros. Se assim não fosse, já a teria modificado e trocado o ministro, pois teve diversas oportunidades e balaios de motivos para isso.

Na verdade, ele contribuiu para - e é parte da - convicção de que a política econômica, mesmo merecendo críticas e pedindo correções em alguns dos seus pontos, tem uma dinâmica e um rumo previsíveis e confiáveis. Como toda política econômica de países periféricos, seu sucesso muito depende de circunstâncias fortuitas da economia internacional - ela não é autônoma. Mas o importante é que este governo tem cumprido a parte que lhe cabe nesse contexto, de modo que, ao que tudo indica, fracassos por erros nossos se tornaram muito menos prováveis do que em passado recente.