Título: A reforma da Carta das Nações Unidas
Autor: Rubens Barbosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

Depois de muitos anos de discussão, os mais de 190 países membros das Nações Unidas (ONU) deverão, nas próximas semanas, concluir o exame de algumas reformas com vista a atualizar e racionalizar os trabalhos do principal fórum mundial voltado para a manutenção da paz e da segurança. Criada em 1945, depois da 2ª Guerra Mundial, a ONU refletia as realidades daquele momento histórico. Hoje os problemas e os anseios da comunidade internacional são diferentes e mais complexos. Novos temas tornaram-se relevantes e novos países ocupam o proscênio internacional. Há consenso quanto à necessidade de mudar e de ajustar a instituição a fim de adaptá-la às novas realidades de poder e de prioridades internacionais.

Sendo esse talvez o mais importante debate institucional da História da Organização, a reforma visa a fortalecer a ONU como instituição e assegurar que ela possa tratar, de maneira mais efetiva, as ameaças e os desafios a que está exposta a comunidade internacional no início do século 21.

Um grupo de personalidades eminentes e o secretário-geral, Kofi Annan, se debruçaram sobre os diferentes aspectos do trabalho desenvolvidos pela ONU e fizeram recomendações concretas para a reforma da Carta das Nações Unidas, o tratado constitutivo, assinado em São Francisco em 1945.

As principais áreas em que os debates deverão concentrar-se serão as seguintes:

Administrativa - O contínuo crescimento do orçamento da Organização e a gerência burocrática estão sendo questionados há muito tempo. O problema ficou agravado agora com o escândalo da corrupção nas operações de troca de petróleo por alimentos no Iraque, inclusive com o envolvimento do filho de Kofi Annan. As reformas deverão incluir medidas para melhorar o sistema interno de controle e de responsabilidade com vista à redução de custos e a alocar recursos para programas prioritários.

Comissão de Construção da Paz - A comissão pretende melhorar a eficiência da ONU na arregimentação de apoio da comunidade internacional para ajudar países depois de conflitos e para preservar a paz. A comissão teria um importante papel na coordenação de ajuda humanitária e na reconstrução e desenvolvimento a longo prazo.

Conselho de Direitos Humanos - A atual Comissão de Direitos Humanos seria substituída por um conselho com número menor de membros e com um plano de ação definido. Seu mandato seria o exame dos casos mais notórios de abusos e violações, o oferecimento de assistência técnica e a promoção dos direitos humanos como uma prioridade global. Do futuro conselho não poderiam participar países com problemas de violação de direitos humanos.

Criação de Fundo para a Democracia - A criação de um Fundo para a Democracia, com contribuições dos países membros, visa a criar mecanismos para apoiar novas democracias e oferecer recursos que ajudarão a desenvolver a sociedade civil e as instituições democráticas em países como os do Oriente Médio.

Convenção sobre Terrorismo - A convenção vem sendo discutida há muito tempo e seria um passo simbólico no esforço das Nações Unidas para combater o terrorismo, um dos principais tópicos da agenda internacional.

Desenvolvimento - A promoção do desenvolvimento econômico sempre foi uma das prioridades das Nações Unidas. O compromisso será revitalizar o Conselho Econômico e Social, fortalecer as instituições e as economias por meio da expansão do comércio, do investimento externo e da ajuda. O enfoque será o apoio à boa governança e políticas econômicas sólidas com vista a erradicar a pobreza e promover o desenvolvimento econômico sustentável.

Reforma do Conselho de Segurança - A reforma do Conselho de Segurança, com a inclusão de novos membros permanentes e não permanentes, é a única proposta que exigirá uma emenda da Carta de 1945. Caso efetivada, deverá afetar a estrutura e o equilíbrio de poder no âmbito das Nações Unidas. Seria uma forma de dar maior representatividade e legitimidade ao conselho e a suas decisões, ao incorporar novos países que refletem as novas realidades do cenário mundial no início do século 21. Os potenciais candidatos a membros permanentes, que passariam de 5 a 11, deveriam preencher certos critérios, como a dimensão da economia, população, capacidade militar, contribuição para o orçamento da ONU e para as operações de paz. O equilíbrio geográfico global e a necessidade de tornar o conselho mais efetivo e eficaz seriam outros critérios a serem observados.

As propostas de reformas serão examinadas em reunião especial nas próximas semanas e deverão ser aprovadas pela Assembléia-Geral, por maioria simples, a partir do fim de setembro.

A reforma do Conselho de Segurança, sendo uma emenda à Carta das Nações Unidas, somente entrará em vigor se for aprovada por maioria qualificada de dois terços dos membros da Assembléia-Geral e ratificada também por dois terços dos membros, inclusive todos os membros permanentes (EUA, China, Reino Unido, França e Rússia).

Em vista da ausência de consenso em torno da proposta defendida sobretudo por Brasil, Índia, Japão e Alemanha, da oposição de EUA e China e da dificuldade de ampliar o apoio com os votos dos países africanos, o mais provável é que para não ser rejeitada haja um pedido de adiamento da votação do projeto de resolução, postergando-se a decisão desse assunto.

As modificações que vierem a ocorrer não recolocarão a ONU no papel central que teve no mundo bipolar da guerra fria. O multilateralismo, enfraquecido pelo unilateralismo dos EUA em choque direto com algumas regras fundamentais das Nações Unidas, terá, assim, de aguardar mais algum tempo para voltar a fortalecer-se.