Título: Descriminação do aborto
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Fonte: O Estado de São Paulo, 23/08/2005, Notas e Informações, p. A3

Com o término dos trabalhos da comissão tripartite criada em abril pelo governo para estudar a suspensão de algumas das sanções penais que recaem sobre o aborto, a sociedade brasileira terá de tomar posição diante de uma questão moral que sempre foi tratada como dogma pela Igreja Católica: até que ponto a interrupção da gravidez indesejada pode ser uma decisão de caráter absolutamente individual, ou seja, dependente apenas do juízo pessoal de uma gestante? Com base no dogma segundo o qual a vida é um dom de Deus que só Ele pode retirar, a Igreja sempre condenou qualquer forma de aborto, inclusive os dois casos permitidos pela lei brasileira. Segundo o Código Penal, a gestante pode interromper a gravidez se a concepção resultou de estupro ou se estiver correndo risco de vida. Nos demais casos, o aborto é considerado crime, sujeito a penas que variam de um a três anos de prisão.

Com a mudança de valores morais e dos costumes nas modernas sociedades da comunicação instantânea, no entanto, entidades médicas, movimentos feministas e organizações não-governamentais (ONGs) passaram a reivindicar a descriminação do aborto e a discussão da matéria deixou de ser tabu. A campanha também foi deflagrada por outro importante fator: o alerta, por parte das autoridades de saúde, para os graves problemas causados pela clandestinidade em que se processam as práticas abortivas no País, especialmente nos segmentos mais desfavorecidos da população.

Segundo as estatísticas, a cada ano 1 milhão de brasileiras optam pela interrupção voluntária da gravidez indesejada. Mas, como o aborto não pode ser feito em hospitais regulares, além de não ser procedimento coberto pelos planos de saúde, muitas mulheres recorrem a clínicas clandestinas, onde são atendidas por pessoas sem qualificação técnica e em instalações precárias. O Sistema Único de Saúde (SUS) registra, anualmente, 238 mil internações por complicações causadas por abortos malfeitos. Esta já é a quarta causa de mortalidade feminina no País.

Diante das pressões de entidades médicas e grupos feministas em favor da legalização do aborto, da forte resistência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e das promessas que fez a ONGs e movimentos sociais na campanha eleitoral de 2002, o presidente Lula nomeou em abril uma comissão tripartite, integrada por 18 pessoas, para estudar a questão. O projeto por ela concebido, após quatro meses de trabalho, autoriza o aborto realizado até a 12ª semana de gestação e não determina o limite de tempo para o aborto em casos de grave risco à saúde da mulher e de má-formação do feto. Pela proposta, que será submetida a consulta pública antes de ser enviada à Câmara, onde terá como relatora a médica Jandira Feghali (PC do B/RJ), o aborto somente será considerado crime quando for realizado contra a vontade da gestante.

Evidentemente, embora conte com o apoio do Ministério da Saúde, da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, de entidades representativas de ginecologistas e obstetras e até de organismos multilaterais - que vêem no aborto legal e seguro uma forma de controle da natalidade e, por tabela, de redução da pobreza -, esse projeto terá uma longa e difícil tramitação. Enquanto seus críticos pretendem questioná-lo no plano moral, seus defensores planejam uma campanha educativa para explicar à sociedade a importância da aprovação.

Os argumentos invocados por ambas as partes são respeitáveis e certamente levarão o País ao mesmo embate travado há pouco mais de três décadas nos países desenvolvidos. Até 1967, quando a Inglaterra liberalizou o aborto, a interrupção voluntária da gravidez indesejada era considerada crime em quase todo o mundo. Seis anos depois, numa decisão histórica, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a mãe é quem decide até o sexto mês da gravidez. Em muitos países é o juízo pessoal de cada mulher que prevalece. Em princípio, parece ser a política mais adequada. Mas seria necessário que todas as brasileiras tivessem plenas condições culturais de tomar essa decisão, o que, infelizmente, não é o caso.