Título: Defesa delirante
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/08/2005, Notas e Informações, p. A3

O deputado José Dirceu sabe que, muito provavelmente, perderá o mandato e terá os seus direitos políticos suspensos por até 10 anos - o que, de resto, o obrigará a se desfiliar do PT. Mas, desde que a crise rebentou e ele foi afastado da Casa Civil, ficou evidente a sua decisão de cair atirando com as armas que tiver a seu alcance; só não está claro até aonde irá na escolha de seus alvos e se fará sozinho os disparos. O primeiro e o mais fácil de ser atingido é o deputado Roberto Jefferson, que o apontou como cabeça do esquema de compra de deputados. Na defesa por escrito levada ao Conselho de Ética da Câmara, que julga o pedido de sua cassação, Dirceu e seu advogado, José Luís Oliveira Lima, dirigiram, como era de esperar, pesadas invectivas ao ex-presidente do PTB: as suas denúncias são "delirantes", "frutos exclusivos de uma mente doentia" - e por aí. O ex-ministro alega que as acusações contra ele são "improcedentes e frágeis". Certamente pode-se dizer o mesmo dos argumentos que invoca para se defender. O primeiro é retórico e também "delirante": querem destruí-lo "não pelo que fez, mas pelo que representa". Outro não é propriamente um argumento e, sim, uma negativa: não mandou subornar deputados, não tratou com nenhum banco de empréstimos ao PT, apenas "sabia genericamente que o partido estava com problemas financeiros" e tudo se resume à quitação de "dívidas de agremiações políticas ligadas a campanhas eleitorais". O último argumento é simplesmente falso: não houve quebra do decoro parlamentar porque "não estava no exercício do mandato". A alegação inicial embute a premissa de que ele é o líder de proporções históricas da causa socialista no Brasil, que os inimigos apenas esperavam a hora de eliminar.

Essa defesa grandiosa pode fazer bem ao ego de quem assim se enxerga, mas tem pés de barro: se Dirceu representa algo é a fome de poder a qualquer custo, a pretexto de um projeto ideológico, o que o levou a orquestrar um formidável rearranjo de forças partidárias na Câmara dos Deputados, pagando o preço compatível com a venalidade dos arrebanhados para a base governista. A reputação do deputado Roberto Jefferson não é propriamente ilibada, mas isso não desqualifica o que disse de Dirceu, simplesmente porque nada do que ele vem afirmando foi desmentido pelos fatos trazidos à tona em três CPIs, na Polícia Federal e no Ministério Público. Além disso, poucas coisas neste festival de corrupção são tão verossímeis como a revelação de Marcos Valério de que o então tesoureiro petista Delúbio Soares lhe garantiu o retorno do capital investido, por assim dizer, porque no comando de tudo estava José Dirceu.

Por fim, não resiste a um sopro a tese de que ele é inimputável como deputado porque era ministro. O Congresso já processou parlamentares por crimes cometidos antes de se elegerem, como o acreano Hildebrando "Motosserra" Pascoal. E Dirceu não apenas não renunciou ao mandato para assumir uma função no Executivo, como, ainda, a receber salário de ministro, preferiu ficar com o de deputado. Tem mais: há pouco, o repórter Ricardo Ferreira, da CBN, revelou que, em janeiro de 2003, portanto depois da diplomação, Dirceu exercia função pública remunerada, como membro do Conselho Administrativo da Petrobrás - para o que o art. 55 da Constituição prevê cassação do mandato do transgressor. Isso, afora o fato de que, tendo reassumido, ele faltou com a verdade ao Conselho de Ética, ao afirmar que nunca recebera dirigentes da Portugal Telecom.

Combinando com o estilo do acusado de quebra de decoro, o texto de sua defesa tem um quê de megalomania. "Sai o deputado, fica o precedente", antevê o documento. "A maioria pode resolver punir um líder da minoria (sic) sem uma prova firme e cabal de ele haver faltado com o decoro, mas apenas para afastar o desafeto do palco político. E o processo democrático, que já custou tanto sangue, estará sendo preservado?" Como se algo estivesse mais preservado nesta crise do que as instituições que fazem funcionar o processo democrático. E elas sobreviverão mesmo a se confirmar o rumor de que Dirceu mandaria Delúbio derrubar "as colunas do templo", se tiver de renunciar até hoje, conforme o ultimato do presidente petista Tarso Genro, ao lugar a que tem se aferrado com unhas e dentes na chapa do Campo Majoritário para a eleição de 18 de setembro no partido. Também no PT Dirceu é repudiado "não pelo que fez, mas pelo que representa"?