Título: Uma CPI para o Copom
Autor: Antonio Carlos T. Álvares
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/08/2005, Economia & Negócios, p. B2

O Comitê de Política Monetária (Copom) manteve, mais uma vez, a taxa básica de juros em 19,75% ao ano. Provavelmente deverá alegar, em sua famigerada ata mensal, que tomou essa decisão para buscar o centro da meta de inflação (5,1% ao ano). Vamos supor que tenha sucesso nessa empreitada, mas que para isso precisasse manter inalterada a taxa nominal de juros pelos próximos 12 meses. Calculemos a taxa de juros reais que essa política monetária insana provocaria. Por juros reais entenda-se os juros que incidem sobre a riqueza original, ou seja, o capital original emprestado, devidamente corrigido pela inflação.

Ao contrário do que alguns podem pensar, não é correto obter a taxa real de juros pela diferença direta entre as duas taxas. Na verdade, a consideração deve ser que R$ 1 mil tomados emprestados à taxa anual de 19,75% produziriam uma dívida que deveria ser liquidada, daqui a um ano, por R$ 1.197,50. Entretanto, devido à inflação de 5,1%, após um ano o capital original (riqueza) deveria ser ajustado para R$ 1.051. Assim, os R$ 1.197,50 seriam compostos pelo capital corrigido de R$ 1.051 e por uma parcela de juros de R$146,50, o que resultaria numa taxa real de juros de aproximadamente 14% ao ano.

O conceito de taxa real de juros é importante porque permite comparar o verdadeiro custo do capital entre países com diferentes taxas de inflação. Permite também calcular o estado da dívida no futuro, em moeda atual.

Uma taxa real de juros de 14% ao ano é, de longe, a maior do planeta. Nos EUA a taxa real de juros é de cerca de 1,4% ao ano (taxa nominal de 3,75% e inflação anual de 2,3%).

Apenas para situar o nível de sandice que representa uma taxa real de juros de 14% ao ano, vale comentar que a segunda maior taxa de juros reais de todos os países do mundo estaria por volta de 8% ao ano (Turquia). Uma taxa real de juros de 14% ao ano arruína qualquer devedor em poucas décadas. A dívida, se capitalizada, dobraria a cada cinco anos, em 50 anos seria multiplicada por 700 e em 100 anos seria multiplicada por 490 mil vezes! A capitalização de uma dívida à taxa de juros anual de 14% é matematicamente impossível.

Isso acontece porque o fenômeno de capitalização composta é explicado por uma curva exponencial sempre crescente que tende mais rapidamente para o infinito quanto maior for o valor da taxa de juros. A condição para que o valor de uma dívida (ou de uma aplicação) num sistema de capitalização contínua não supere todas as riquezas disponíveis, no longo prazo, é que a taxa de juros não seja maior que a do crescimento econômico. Ou seja, a taxa de juros reais não pode, por muito tempo, superar a taxa média de criação de riquezas de uma economia.

A equipe econômica do governo procura contornar a armadilha gerando o que chama de superávit primário (eufemismo para designar a parcela dos juros que é paga aos credores). Deve pensar com isso que está escapando da capitalização da dívida. Pois bem, e o montante correspondente à parcela de juros para onde vai? Ficará vagando no mercado financeiro, sem destino? Claro que não, precisará ser enxugado no overnight. E a ciranda financeira continua concentrando, cada vez mais, a renda nacional.

Não é um problema de inflação, não é um problema de modelo econômico, nem de crise política, trata-se de simples problema matemático. Não há escolha a não ser baixar a taxa de juros reais rapidamente para patamares civilizados ou teremos um encilhamento da dívida. Alguns economistas do Banco Central aparentemente não concordam com isso, alegam que, além da inflação, existe uma tal taxa de equilíbrio abaixo da qual o capital internacional fugiria do Brasil. Penso exatamente o contrário. Talvez o que esteja provocando a cautela dos investidores seja a certeza matemática de que o Brasil irá quebrar se a taxa real de juros permanecer, como há muitos anos está, na estratosfera.

Na semana passada, tive essa minha opinião reforçada quando o secretário do Tesouro dos EUA, John Snow, declarou que as taxas de juros brasileiras estavam altas demais. Afinal, quem se beneficia com os juros na estratosfera? Claro que não é quem os paga, mas quem os recebe. Quem paga é o próprio governo e o sistema produtivo que gera exportações, emprego e renda. Cálculos indicam que o déficit público seria zerado se a taxa Selic estivesse em 15% ao ano.

Quem recebe juros? O sistema financeiro, os fundos de pensão e os rentistas. Apesar disso, Marcio Cypriano presidente do Bradesco e da Febraban, declarou, na semana passada, que considerava os juros altos demais. Infelizmente o sistema financeiro parece não ter somente instituições sérias como o Bradesco. O escândalo do mensalão deixa isso claro. Juro real elevado demais também pode ser fonte de desvio e corrupção, um empréstimo sem juros, casado com uma aplicação à taxa Selic, faria a alegria de qualquer tesoureiro de partido. Passou da hora de o Copom interromper a sandice de fixar a taxa nominal de juro na casa de 20% para perseguir uma de inflação de 5% ao ano. A persistir essa loucura, a única saída será criar uma CPI do Copom.