Título: Botequins não são como o PT
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

Na sexta-feira passada, este jornal transcreveu trechos de entrevista do senador e líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante (PT-SP), à GloboNews. Disse então que seu partido tinha a "administração financeira e orçamentária de um botequim". Perdão, senador, mas tal comparação não faz jus a seu talento de economista e é também uma ofensa a donos e/ou administradores de botecos. Conheço-os desde criança, quando perto de casa freqüentava um deles, cujo proprietário às vezes me pedia que tomasse conta do local enquanto saía rapidamente por um motivo ou outro, como ir ao banco. Décadas depois, costumo passar pelo boteco do Jorge, na Rua Sergipe, em São Paulo, onde nem preciso pedir nada, pois ele já conhece minha preferência pelas fatias de queijo que também oferece.

Mas o que é um botequim? Meu dicionário diz que é um "estabelecimento comercial popular onde servem bebidas, lanches, tira-gostos e eventualmente alguns pratos simples". O do Jorge cabe nessa definição. Ele explicou que um boteco evolui para uma lanchonete quando passam a predominar os sanduíches e outros lanches; se os pratos saem regularmente e as mesas para essa finalidade crescem em número e em espaço ocupado, o estágio seguinte é o de um restaurante.

Entre o boteco da minha infância e o do Jorge, passei por muitos outros, entrando ou não. Sua pequena escala e a gestão familiar também cabem na definição, pois são traços típicos de um estabelecimento desse tipo. Creio que no País seu número deve alcançar centenas de milhares. Ou, talvez, mais de 1 milhão. Sem perceber, o senador pode ter comprado uma briga grande, ampliável pelo envolvimento da clientela e de familiares dos donos.

De um modo geral, os botecos são tocados por gente de baixa renda, trabalhadora, digna de respeito e particularmente elogiável por seu espírito empreendedor e por seu empenho numa atividade altamente competitiva em que as tais "horas extras" são uma trivialidade. Outro aspecto importante é a capacidade do dono de manter um clima de cordialidade relativamente aos clientes e entre eles, em condições em que a bebida - sem a qual um botequim não merece o nome - estimula não só a alegria, mas também relações conflituosas. Aliás, minha última conversa com o Jorge teve de ser interrompida para que ele apartasse um princípio de briga entre dois clientes.

Quando indaguei sobre a administração orçamentária e financeira, Jorge confirmou o que eu imaginava. Para manter um boteco aberto é preciso não gastar mais do que a receita e trabalhar muito para assegurar uma retirada satisfatória. Quanto a dívidas, seu igualmente sábio conselho é o de admitir apenas o que chama de "endividamento controlado", isto é, aquele que o proprietário tem condições de pagar, e decorrente principalmente de débitos com fornecedores.

Assim, seguir bons princípios administrativos é indispensável à sobrevivência dos botecos. Se existem em grande número, é porque se administram com eficácia. Noutro trecho de sua entrevista, o senador Mercadante atribuiu o endividamento do partido a "uma administração temerária que não cumpriu nenhum dos princípios elementares na administração de uma empresa". Ora, botequim também é empresa e sua gestão procura seguir os mesmos princípios, que valem para organizações em geral, inclusive partidos políticos.

Portanto, se o PT tivesse adotado as sadias práticas de uma administração botequineira, não estaria nessa enrascada em que se encontra, e também saberia resolver as brigas internas em que hoje se envolvem seus freqüentadores. Assim, a tese defendida pelo senador Mercadante, mesmo se exposta com a permissividade de um papo de botequim, correria riscos juntamente com seu autor, pois, se ouvisse a exposição, o dono do boteco a reprovaria, muito provavelmente com o apoio da clientela. E mais: se houvessem conhecido o Jorge em tempo hábil, os altos próceres do PT se teriam beneficiado de outra das suas lições, pois ele contou que quase pôs seu negócio a perder quando delegou sua gestão a uma pessoa que não se comportou com eficácia e probidade.

Ou seja, é preciso cuidar bem da seleção de parceiros. Nenhum dono de botequim se arriscaria a selecionar um deles só por ser freqüentador do local, com sua carteirinha informal. Já para o PT a carteirinha se sobrepôs à competência e a outros valores indispensáveis à gestão adequada de uma organização, seja um boteco ou um partido.

Outro traço a diferenciar a administração do PT da de um botequim é que este está sujeito à legislação de proteção ao consumidor. Como não há uma correspondente legislação a proteger o eleitor, o PT contratou um marqueteiro que se tornou famoso por levar à vitória um candidato a presidente por meio de um processo hoje percebido como um caso clássico de propaganda política enganosa, inclusive pela avaliação de muitos petistas e ex-petistas.

Mais uma diferença clara do PT em relação aos botequins é que para o dono de um destes a dinheirama manipulada pelo partido só existe em sonhos lotéricos. Aliás, noutra comparação na mesma entrevista, e em contraste com a referência aos botequins, o senador Mercadante disse que o "PT cresceu de tal forma que passou a ser uma grande rede nacional de supermercados".

Ou seja, faltou também às metáforas do senador uma dimensão de escala, pois é estranha essa comparação simultânea a um botequim e a uma rede desse porte. Simultânea mesmo foi a ofensa da comparação do PT a esses dois empreendimentos, em face dos métodos de gestão que o partido abraçou.