Título: Ninguém pode ser meio honesto
Autor: Luciana Garbin
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2005, Metrópole, p. C1

O que faz alguém ser honesto? Pessoas apontadas como tal ressaltam o valor da criação familiar. "Ah, isso já vem do tronco velho, passa de pai para filho", conta o faxineiro Francisco Basílio Cavalcante. "Não importa se os outros são corruptos. Cada um tem de fazer sua parte, pois Deus olha por todos. Tem gente que até hoje diz que fui besta por devolver o dinheiro, mas não me arrependo. Sou feliz e durmo tranqüilo." Para a professora de Educação Física Milena Boni, de 23 anos, ser honesta numa entrevista de trabalho lhe tirou um peso. No começo do mês, ela se candidatou a uma vaga de assistente administrativa. Pediu então a uma amiga que arrumasse seu currículo. Que acabou "turbinando" o documento.

Adventista, Milena diz ter aprendido com os pais que mentir não leva a nada e começou a passar mal mesmo antes da entrevista. "Os três dias anteriores foram terríveis. Já acordava ansiosa e vinha aquela voz de Deus: não, não, fala a verdade."

Depois do teste psicotécnico e da redação, chegou a hora da entrevista. Com seu currículo na mão, a entrevistadora começou a repassar sua experiência profissional. "Que tipo de compras você fazia nessa empresa?" Foi a primeira pergunta. Milena, que nem sequer havia trabalhado lá, engasgou. Na segunda, a mesma coisa. Na terceira, decidiu contar que nunca havia trabalhado na empresa e tinha coisa inventada no currículo. A entrevistadora gostou da atitude. "Ela me disse: admiro sua honestidade, são raras as pessoas que fazem isso." O resultado da seleção ainda não saiu, mas Milena está confiante. Dizer a verdade foi um alívio.

"O ser humano sofre influência de todos os lados e vingam as áreas mais fortalecidas. Há casos em que a educação familiar e escolar é tão forte que forma uma personalidade íntegra", explica a professora Branca Jurema Ponce, da PUC, lembrando, porém, que é preciso diferenciar formação de valores de informação. "Na sociedade de hoje, há excesso de informação e carência de formação."

Branca diz que o termo honestidade vem do latim honestus, sinônimo de honoris status, que significa honra estável e tem a ver com íntegro e virtuoso. Diferencia-se da coação externa, feita, por exemplo, por medo ou culpa. "Quem pára no sinal vermelho porque viu o guarda na esquina age coagido por situação externa. Já honestidade é valor interiorizado."

O professor de Ética da Unicamp Roberto Romano destaca, no entanto, que se deve ter cautela na abordagem de honesto ou desonesto, porque são conceitos profundamente abstratos. "Quando se apela ao conceito de honesto, ao mesmo tempo se apela à consciência de quem julga os outros e a si mesmo." E alerta também para o erro de confundir honestidade com sinceridade. "A pessoa pode ser absolutamente sincera e completamente desonesta, usando inclusive informação que tem do outro para destruí-lo."

Para o psicólogo da Clínica da PUC Hélio Roberto Deliberador, é preciso lembrar que todos temos virtudes e vícios. Prova é que na humanidade há tanto registro de gestos altamente virtuosos - anônimos ou históricos - quanto execráveis. "O homem é um ser em circunstâncias. Mas alguns conseguem aprimoramento pessoal maior e são mais capazes de cultuar virtudes e deixar obscurecidos os desvios."

FRUTOS

Em relação à crise política, Deliberador explica que a decepção atual é intensa por envolver personagens da história recente que teriam em tese condutas virtuosas. Mas causa uma atitude reflexiva, que é positiva e pode render frutos.

"A corrupção é uma questão do homem, está em todos os países, dos mais pobres aos mais ricos. A diferença é como as leis são trabalhadas e a maior ou menor crença de que cumpri-las significa o bem coletivo", diz. "O problema é que nosso sistema de fazer cumprir leis é longo, complexo e sujeito a uma certa impunidade."

Especialistas também consideram positivo o fato de vivermos hoje numa sociedade democrática, com maior acesso a informações. "Prefiro saber de toda essa crise ao que vivi na ditadura, onde havia a mesma palhaçada, mas também uma censura que impedia a discussão ampla", diz Branca.