Título: Esqueleto bilionário
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2005, Notas e Informações, p. A3

Mais um "esqueleto" bilionário gerado por um pacote econômico ameaça levar as contas públicas e o sistema financeiro ao colapso. Desta vez, o objeto da discussão é o índice de correção monetária a ser aplicado nos contratos de empréstimo bancário firmados em 1994, quando o Plano Real entrou em vigor. Centenas de clientes de bancos recorreram às Justiças Federal e Estaduais pleiteando a aplicação do IGP-M. Já as autoridades monetárias e os bancos afirmam que o Plano Real, por meio da Lei nº 8.880, impôs o IGP-2. A diferença entre os dois índices, naquele ano, foi de 39%.

Se as instâncias superiores do Judiciário decidirem em caráter definitivo a favor de quem tinha um contrato de empréstimo bancário, em 1994, os bancos sofrerão enormes prejuízos, uma vez que terão de pagar essa diferença com recursos próprios. O mesmo também ocorrerá com a Receita Federal, pois a troca de índice de correção monetária do balanço das empresas a obrigará a compensar o que foi pago a mais. Só para os cofres públicos, levando em conta os juros acumulados em dez anos, essas ações podem custar R$ 26,5 bilhões. Mas esse valor pode ser ainda maior, já que a imposição do IGP-M sobre o IGP-2, o índice previsto pelo Plano Real, abriria o precedente para a revisão de uma extensa gama de contratos, como os de aluguel, de seguro, de franchising e de trabalho.

Os efeitos de uma decisão favorável ao IGP-M seriam tão devastadores que, para tentar evitá-la, bancos e governo passaram a agir em conjunto, tomando duas iniciativas inéditas. À Confederação Brasileira dos Bancos coube atuar no plano jurídico, impetrando no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Argüição por Descumprimento de Preceito Fundamental, com o objetivo de pedir à corte que obrigue os juízes a decidir em favor do IGP-2. Já às autoridades monetárias coube a tarefa de sensibilizar o relator do processo, ministro Sepúlveda Pertence, por meio de uma extensa carta na qual o secretário do Tesouro, Joaquim Levy, chama a atenção para o "impacto devastador" que uma decisão favorável ao IGP-M causaria na economia.

Uma troca de índice por determinação do Supremo, afirma ele, levaria ao "surgimento de uma nova classe de esqueletos, com imediato aumento da relação dívida/PIB (de aproximadamente 1,4%), o que tenderia a tisnar as perspectivas econômicas do País, ao aumentar a percepção do risco fiscal, piorar a classificação da dívida pública e prejudicar a disposição dos agentes econômicos a se expor a riscos domésticos". Além disso, a imposição do IGP-M, em detrimento do índice estabelecido pelo Plano Real e previsto pela Lei nº 8.880, "implicaria rever uma rede complexa de contratos com desdobramentos imprevisíveis, que tenderiam a paralisar a economia por longo tempo", conclui Levy.

Essa é uma iniciativa corajosa. Raras vezes, em nossa história, dirigentes da área econômica agiram de forma tão transparente e incisiva, no encaminhamento de argumentos técnicos para defender os interesses da União e do sistema financeiro, no STF. O que motivou o secretário do Tesouro a tomar essa decisão é a confusão reinante nas instâncias inferiores do Judiciário, em cujo âmbito os juízes federais têm decidido em favor do sistema financeiro, enquanto os juízes estaduais vêm expedindo sentenças favoráveis aos clientes. "Como isso pode se tornar uma epidemia, é bom verificar logo quem tem e quem não tem direito", afirma o advogado dos bancos, Arnold Wald, ao justificar por que, com base nos argumentos técnicos de Levy, recorreu a um tipo de ação que tem efeito vinculante sobre toda a magistratura. Introduzida há pouco na legislação processual, a Argüição por Descumprimento de Preceito Fundamental pode ser proposta por entidades de classe quando há dezenas de decisões de instâncias inferiores em sentido oposto.

Ao comentar as contestações judiciais a antigos planos econômicos, os riscos dos "esqueletos financeiros" para as contas públicas e a tendência de muitos juízes de não levar em conta as implicações econômicas de suas sentenças, o então ministro da Fazenda do governo anterior, Pedro Malan, costumava dizer que, no Brasil, até o passado é imprevisível. E, ao que parece, tão cedo não vai deixar de ser.