Título: Os 20 anos do transplante de fígado
Autor: Adriana Dias Lopes
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2005, Vida&, p. A26

Era 1º de setembro, 23 horas. Ano, 1985. A data, que completa exatos 20 anos na quinta-feira, jamais saiu da memória da equipe de médicos brasileiros responsável pela mais complexa e audaciosa cirurgia até então feita no Brasil: a conclusão do primeiro transplante de fígado bem-sucedido do País. A operação no Hospital das Clínicas, feita sob tempo chuvoso, durou exaustivas 23 horas, mobilizando 20 médicos que se revezaram - ao som de Beethoven - em torno da estudante de Direito Maria Regina Mascarenhas, de 22 anos, para dar a ela o fígado de um operário que havia morrido num acidente. A jovem acabou morrendo 15 meses depois, mas vítima do câncer, que acabou voltando.

O transplante de fígado era e ainda é o ato médico de maior complexidade na medicina. De lá para cá, tudo mudou tanto a ponto de ser difícil encontrar similaridade tecnológica e clínica entre os transplantes feitos hoje e os de duas décadas atrás.

DETERMINAÇÃO

O início da história não teve um pingo de glamour. "Foi só determinação", resume modestamente o cirurgião Silvano Raia, na época diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e chefe da equipe. "Em 1956, quando me formei, o fígado era intocável. Percebi que estava à frente de um campo em que poderia me desenvolver. Hoje seria o equivalente ao das células-tronco."

O primeiro transplante do mundo foi feito, sem sucesso, em 1963, em Denver, nos Estados Unidos, pela equipe do médico Thomas Starzl. Apenas quatro países tinham programas constantes de transplante de fígado na época: os EUA, a Inglaterra, a Holanda e a Alemanha.

Até o primeiro bem-sucedido, feito em 1967 também por Starzl, dezenas de pessoas morreram nos centros cirúrgicos (e por mais um bom tempo depois disso). "Houve greve dos anestesistas por conta de tanto insucesso", conta Sergio Mies, na época braço direito de Silvano Raia e, hoje, o chefe da equipe do Hospital Albert Einstein. O índice de sobrevida no mundo era de cerca de 10%.

Justamente em 1967, Raia voltou de Londres especialista em fígado e certo de que iria trazer o transplante para o País. Por três meses, percorreu oito Estados brasileiros divulgando a cirurgia para médicos. Integrantes da equipe foram sendo recrutados e muitos foram enviados para o Hospital de Pittsburgh, para onde Starzl havia ido com seu grupo.

Alguns vieram da equipe do cardiologista Euryclides Zerbini - autor do primeiro transplante de coração no País, em 1968 -, como o anestesista Ruy Gomide do Amaral e o hematologista Dalton Chamone.

Em 1968, houve o primeiro transplante brasileiro. Foi malsucedido. Até 1972, mais quatro. "Achávamos que o problema era com os imunossupressores (remédio capaz de diminuir a rejeição ao novo órgão). Mas, na verdade, o procedimento era mais complexo do que o desenvolvimento técnico da época", lembra Raia. "Partimos, então, para experiências com porcos, o animal que tem o fígado mais parecido com o do homem."

450 PORCOS

Até o primeiro sucesso, a técnica foi insistentemente treinada em 450 porcos. Para montar um laboratório no HC para as experiências com animais, o grupo chegou a desembolsar dinheiro do próprio bolso. "Comprei cronômetros, tubos e reativos", conta Chamone. "Tínhamos de improvisar. Num determinado momento, faltou lugar para colocar o soro. Pendurei as bolsas com barbante num cabo de vassoura." Com os porcos, a equipe chegou a fazer 300 retiradas de pedaços de fígados doentes.

Algumas vezes, os próprios médicos iam pegar os animais. "Às vezes, montávamos toda a estrutura e o porco não resistia. Para não haver desperdício, saíamos correndo para pegar pessoalmente com nosso fornecedor", diz Mies.

Um marco decisivo dos transplantes ocorreu em 1978, com a invenção de uma droga imunossupressora, a ciclosporina, que fazia que a capacidade do organismo de combater outros organismos, como vírus ou bactérias, ficasse menos abalada em relação às outras drogas.

Mas foi só em 1983, quando já haviam sido feitos no mundo cerca de 500 transplantes, que o National Institute of Health, o Ministério da Saúde dos Estados Unidos, deu ao transplante de fígado o status terapêutico. E não mais experimental.

Finalmente, em 1985, a cirurgia pioneira no Brasil. Todos sabiam que havia chegado a hora certa. "Não estávamos preparados para fazer apenas um transplante. Mas, sim, para começar o programa de transplantes brasileiro", afirma Mies.

O tempo de espera do doador foi de um mês. O local escolhido foi o Incor, por conta das condições técnicas - hoje se sabe que o transplante de fígado, por sua complexidade, define o grau de desenvolvimento de um hospital.

Órgão identificado e cerca de 40 telefonemas da equipe para mobilizar os profissionais e arrumar o lugar, o primeiro transplante que daria certo começou e terminou ao som de música clássica. "Foi o maior desafio da minha vida", resume o anestesista Gomide.

INTER VIVOS

Em 1988, a equipe de Silvano Raia fez um transplante inter vivos, quando uma parte do fígado de um doador vivo vai para outra pessoa. O trabalho, inédito no mundo, foi publicado na revista britânica Lancet em 1989.

Tratava-se do 24º transplante de fígado feito no Brasil. A mãe doou um terço do próprio fígado para a filha. Hoje, a técnica é usada em várias partes do planeta.

O fígado é um dos órgãos mais complexos do ser humano. Uma das suas principais características é a capacidade de continuar funcionando mesmo quando lhe é tirado um pedaço. Ele se regenera, voltando ao tamanho normal.

Os médicos o comparam a um laboratório farmacêutico. Ele produz proteínas, fatores de coagulação do sangue, filtra toxinas no organismo, participa do processo de digestão, armazena vitaminas e estoca energia.

Também é um dos que menos causam rejeição. Apenas cerca de 20% dos fígados doados são descartados - para o coração, por exemplo, são 60%.

Mas não só as características do fígado fazem que o índice de rejeição seja baixo. "O aperfeiçoamento técnico foi fundamental", avalia Mies.

Um exemplo: no início, lupas e microscópios não entravam nas salas de transplante. Hoje, são instrumentos fundamentais para costurar vasos minúsculos, de 2 milímetros de diâmetro. O risco, portanto, de tromboses - entupimento das veias - era muito maior.

ANESTESIA

Nestas duas décadas, a cirurgia passou por muitas mudanças. O tempo do procedimento ficou seis vezes mais curto. E o corte na barriga, 30% menor. A transfusão de sangue, no começo, era dividida em três tipos: pequena, média e grande. A primeira era quando se usava 5 litros; a segunda, até 50; e a última, mais de 50 litros. "Usar agora 5 litros já é um absurdo", conta Mies. "A metade dos pacientes nem precisa mais de transfusões durante a cirurgia."

A anestesia nem dá para ser comparada. "Aplicávamos a droga intermitentemente", explica Gomide, na época o diretor da divisão de anestesia do HC. "Nosso controle sobre o efeito da anestesia era principalmente clínico. Quando o diafragma do paciente se movia, era sinal para aumentar a dose", explica.

A temperatura do paciente era mantida a 37º C com colchões térmicos. O colchão hoje foi substituído por mantas térmicas e infusões de soro aquecidas. A anestesia é dada constantemente. Houve alteração também na faixa etária. "A idade-limite do receptor era de 45 anos. Há pouco tempo fizemos transplante em um senhor de 78 anos, que está se recuperando muito bem", conta Mies.

Outra mudança fundamental é que nos primeiros seis anos de transplante as equipes iam atrás dos órgãos, o que hoje seria antiético. As centrais de transplante foram regulamentadas pelo Ministério da Saúde em 1991 - são 62 equipes brasileiras, no total. A de São Paulo é a maior delas e conta com a lista de espera mais extensa (veja quadro ao lado).

O número de transplantes, ainda por cima, caiu este ano no Estado. "Nos seis primeiros meses, foram 168 fígados transplantados. Nos seis primeiros meses do ano passado, 242", conta Luiz Augusto Pereira, da Central de Transplantes de São Paulo. Entre os motivos estão a recusa familiar e a falta de doador. A captação dos órgãos é feita pelos próprios hospitais. Só no Estado de São Paulo, são dez lugares que fazem o trabalho. Quando a Central de Transplante é avisada de uma morte encefálica, um grupo de médicos vai falar com a família do paciente.

Nos primeiros transplantes, o paciente ficava dormindo por dois, três dias. "Metade dos pacientes acorda já na sala de operação. A outra metade, em até seis horas", calcula Alexandre Teruya, o atual anestesista da equipe de Sergio Mies. "O próximo passo será eliminarmos a etapa da UTI para a recuperação e passarmos o paciente direto para uma unidade semi-intensiva."