Título: Um consome para se sentir bem; outro só fica bem ao comprar pouco
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2005, Vida&, p. A24

Consumir não é mais luxo, deixou de ser opção e se transformou em uma necessidade: a ser evitada ou saciada. Na sociedade dos estímulos para a compra, das mercadorias disponíveis a todo momento e do bombardeio das propagandas, dois grupos se delineiam entre os corredores e as vitrines dos shoppings centers: os que compram para se sentir bem e os que se sentem bem ao comprar cada vez menos. Para o primeiro grupo, comprar é praticamente uma terapia e uma boa loja é o melhor lugar para se refugiar de um dia ruim no trabalho, mesmo que momentaneamente. Consideram o cartão de crédito item de sobrevivência e não sentem culpa ao chegar em casa com pelo menos uma sacola nova. Fazem parte dos 48% dos entrevistados que afirmam que "fazer compras serve para relaxar", segundo pesquisa feita com 4.641 pessoas pelo grupo Ipsos-Marplan em nove centros urbanos do País, no primeiro trimestre do ano.

São pessoas como a arquiteta Cecília Mugel, de 42 anos, que defende sem remorsos que uma comprinha de vez em quando, ou mesmo toda semana, não faz mal a ninguém. "É uma terapia", diz. "Trabalho como uma doida e entrar no shopping é uma recompensa. Eu me sinto bem se puder comprar aquilo de que gosto", conta.

Desde que moderadamente - ou seja, sem entrar em falência, pegar empréstimos bancários ou estourar todos os limites dos cartões de crédito apenas para adquirir mais uma peça de roupa ou equipamento eletrônico -, o mecanismo de comprar e se sentir melhor logo em seguida tem uma explicação e não precisa ser condenado. "A pessoa que compra pela gratificação do ato e faz uso do objeto está se recompensando, se gratificando de alguma forma. Mexe com o estado de ânimo dela", explica a psicóloga Suely Guimarães, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB).

A satisfação acontece porque, segundo a psicóloga, comprar é também incluir alguma coisa nova à realidade da pessoa, provocando uma mudança no estado no qual ela se encontra com a adição de um novo elemento. Em outras palavras, se uma mulher está triste por algum motivo, compra um vestido novo e se sente bonita, ela melhorou sua auto-estima e, naquela hora, ficou mais animada. "São mecanismos compensatórios que as pessoas encontram para preencher alguns vazios", complementa.

Quem compra até percebe esses mecanismos, mas não modifica seu comportamento ao tomar consciência das tentativas de compensação. "Se estou triste, nervosa, a primeira coisa que me vem à cabeça é consumir. É um refúgio. Entro no shopping e compro, mesmo que seja uma meia. Sei que é uma maneira de tentar esquecer meus problemas", conta a publicitária Marcela Cruz Ferreira, de 21 anos. "Tento me controlar, às vezes fico sem dinheiro, mas adoro comprar", resume.

A prática, no entanto, tem efeito passageiro. "A pessoa se sente bem, mas não resolve o problema principal. Em algum momento, ela vai ter de voltar para resolver o que causou a tristeza que a levou a comprar. A contingência que foi modificada com a compra não tem nada a ver com a briga com o namorado, o problema no trabalho", ressalta Suely. Mas ela mesma dá também uma esperança para os adeptos das compras: "É possível que, ficando melhor, a pessoa ganhe mais força, se sinta mais disposta para voltar e enfrentar o problema".

ANTICONSUMO

O segundo grupo adota uma posição oposta em relação à compra. É a parcela da população que, para se sentir bem, aposta no consumo racional, baseado no que se precisa, sem supérfluos. Tem outras preocupações e aparece em menor número. "Compro menos e consumo menos, mas com mais qualidade" foi a resposta de apenas 23% dos entrevistados.

São pessoas com acesso à informação e bons argumentos para defender e justificar suas posições, geralmente minoritárias até dentro de casa. "A gente pode usufruir da vida sem ter de consumir. Só compro o necessário, não faço questão de coisas novas, sofisticadas ou de última geração", afirma a ex-bancária Mariley Lambert, de 37 anos, que conta, orgulhosa, que tem um celular ultrapassado, usa um tênis comprado em 1997 e agora está planejando colocar um forno caseiro para fazer pizza. "Não quero mais gastar dinheiro com pizza."

Ela explica: "Não é porque eu sou mão-fechada. É que não ligo para essas coisas. As pessoas compram para suprir carências, sem saber por quê. Eu não preciso de coisas da moda para mostrar para os outros." Na casa de Mariley, os objetos sempre que possível são reciclados e usados até ficar gastos. Os armários e a mesa perto da churrasqueira foram feitos pelo marido com madeira encontrada na rua. Há pomar e os pães e doces são feitos na própria cozinha.

São pessoas resistentes ao aforismo do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que diz que ser sujeito no mundo de hoje é ser consumista. "Se você não consome, não é ninguém. São atitudes de consumo, de compra, socialmente produzidas pelo mundo capitalista. Há os que resistem, que subjetivam esses estímulos da mídia para comprar de outra maneira", analisa a psicóloga Neusa Guareschi, especialista em psicologia do consumo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

E há ainda os que descobrem em sua busca por um bem-estar que podem modificar sua relação com o consumo, como o analista de sistemas Rodrigo Laranjo, de 28 anos, um ex-viciado em compras que se define agora como um consumista racional. "Eu gastava demais, comprava por ansiedade. Até que em 2003 perdi o emprego e tive de repensar minha relação com o dinheiro."

Depois do sufoco, quando teve de abrir mão das coisas caras e da freqüência com que gastava para pagar dívidas, ele só compra hoje o que precisa de verdade. "Passei a comprar coisas usadas, mais simples, baratas. Aprendi que não precisava comprar tanto nem ter tantas coisas para viver bem."

Na trajetória, o ex-gastão passou de um extremo ao outro, vivenciando o êxtase rápido proporcionado pela aquisição de novos objetos e descobrindo o prazer em ter menos e com racionalidade - um passo difícil no mundo "coisificado", segundo a psicóloga Sueli Damergian, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). "As pessoas fazem dos objetos de consumo substitutivos de outras coisas, das próprias pessoas às vezes. Relacionam-se com eles e até mesmo quando estão entre elas é para falar sobre os objetos", analisa. Sendo assim, no universo do mercado, onde os estímulos para a compra são ininterruptos, consumir não é proibido, desde que com moderação.