Título: Dilema era matar ou ver os filhos morrer
Autor: Jeremy Page
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2005, Internacional, p. A20

Após 11 cirurgias e quase um ano no hospital, o rosto de Larissa Kudziyeva ainda está gravemente desfigurado, o braço lesionado ainda muito fraco para trabalhar. A contadora de 41 anos usa óculos escuros e o cabelo caído sobre um lado do rosto para disfarçar as cicatrizes deixadas pela explosão de uma granada. A blusa cobre a ferida que quase a fez perder o braço direito. Mesmo assim, ela mal consegue acreditar em sua sorte no momento em que se prepara para levar seu filho, Zaurbek, de volta à escola. Na quinta-feira fará um ano desde que homens armados os tomaram como reféns, com mais 1.200 pessoas, na Escola N.º 1 da cidadezinha de Beslan, na república russa da Ossétia do Norte. Talvez tenha sido por causa de sua bela aparência que os seqüestradores a tenham escolhido enquanto ela tentava proteger Zaurbek, então com 7 anos, e Medina, sua filha de 20 anos. Talvez fosse porque vestia preto, de luto pela morte do marido ocorrida alguns meses antes.

Ela não consegue explicar exatamente por que um dos seqüestradores, que disse chamar-se Abdullah, puxou-a para um lado em 2 de setembro, o segundo dia do cerco, e lhe fez a proposta que lhe gelou a espinha. Ele disse que Zaurbek, Medina e outros parentes seus poderiam sair livres, mas, para isso, ela teria de atar em si mesma um cinto com explosivos e se tornar uma shakhidka, ou seja, uma mulher-bomba, em apoio às exigências deles para que a Rússia se retirasse da vizinha Chechênia.

Aturdida, Larissa perguntou se tinha um tempo para pensar. "Vá e sente-se. Terá um tempo", respondeu Abdullah, segundo ela. De volta ao ginásio onde estava a maioria dos outros reféns, ela lhes falou sobre a oferta. "Eles disseram que talvez eu devesse fazer isso e então os terroristas nos deixariam partir." Larissa não teve tempo de dar a resposta. O cerco acabou no dia seguinte, quando forças especiais russas tomaram de assalto a escola com uma saraivada de tiros e explosões que matou 331 pessoas, mais da metade delas crianças.

Inconsciente durante cinco dias, ela passou os 11 meses seguintes no hospital. Passado um ano, entretanto, enquanto investigadores oficiais ainda lutam para explicar o que aconteceu, ela voltou para casa para dar uma visão única sobre as personalidades e os objetivos dos seqüestradores. "Eu simplesmente queria que as pessoas soubessem o que aconteceu na escola, porque é preciso que saibam a verdade", disse.

Larissa foi uma das poucas reféns a estabelecer uma relação com seus captores - um relacionamento forjado, pensa ela, quando gritou por ajuda enquanto cuidava de um refém ferido. Abdullah lhe disse para calar a boca e encostou seu fuzil AK-47 na testa dela, mas Larissa agarrou o cano e gritou: "Pare de fazer encenações diante dessas mulheres e crianças apavoradas. Suas mulheres chechenas dão à luz em nossos hospitais e seus filhos ficam em nossos centros de recuperação."

Abdullah replicou: "Aqueles não são nossas mulheres nem nossos filhos. Eles são a prole de Kadyrov", referindo-se ao presidente checheno assassinado no ano passado. Mas ele recuou. Munida de coragem, Larissa aproximou-se de dois seqüestradores, Ali e Ibrahim, e perguntou se podia levar as crianças para beber água e ir ao banheiro. Ali, que se declarava "assessor de imprensa", disse que ela o fazia lembrar a esposa, morta num ataque aéreo a um vilarejo checheno. Disse que seu verdadeiro nome era Baisangur. Quando Larissa lhe perguntou por quanto tempo ficaria detida, ele respondeu: "Até que o último funcionário federal deixe a Chechênia, vocês terão tudo de que necessitarem."

Larissa conta que Ali desapareceu depois do segundo dia, mas mais tarde ela encontrou mochilas cheias de alimentos e artigos de higiene: "Eles queriam ficar muito tempo."

A certa altura, um menino a quem ela tinha levado ao banheiro pediu a Abdullah ajuda para desabotoar as calças. "Veja, ele acha que você é uma pessoa, não um bandido", disse ela. "Não sou um bandido, sou um terrorista", retrucou ele. Disse ainda que as mulheres da Ossétia eram bonitas e os chechenos viriam e as levariam embora num caminhão. "Eu lhe disse que deveria usar um avião para tais beldades", lembra ela. "Queria fazê-lo falar." No dia seguinte, ele a chamou e perguntou se era ingushi, um grupo étnico na maioria muçulmano cujas mulheres freqüentemente se vestem de preto. Ela disse que não. Então, ele propôs que se tornasse mulher-bomba.

Fazendo uma retrospectiva dos acontecimentos, Larissa diz que sabia que não podia confiar em seus captores. Mesmo assim, seu relacionamento com eles talvez a tenha ajudado a se salvar e a salvar várias crianças. No terceiro dia do cerco, ela convenceu Ibrahim a permitir que transferisse várias crianças para a sala de ginástica próxima ao ginásio esportivo, que era mais arejada e tinha um pequeno banheiro anexo.

Depois que a primeira explosão na tentativa de resgate deu início a um incêndio no ginásio, Ibrahim a conduziu, juntamente com Medina e Zaurbek e várias outras crianças, para a cantina da escola. Foi então que ela viu dois soldados das forças especiais passando pela janela. Ibrahim estava perto dela, mas atirou somente nos soldados. Ele então lançou duas granadas de mão e uma delas caiu a um metro dela. Ela se jogou em cima de Zaurbek e Medina, absorvendo o impacto da explosão no braço direito e no rosto.

Quando voltou a si, em 8 de setembro, o médico lhe disse que deveria considerar isso um novo nascimento. "Tudo foi um milagre, o fato de eu poder enxergar e ter conseguido proteger meus filhos", diz ela. "Estive quase morta e consegui escapar."