Título: 'É difícil superar esta crise, ela atingiu o coração do governo'
Autor: Mariangela Hamu
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2005, Nacional, p. A8

Por ter atingido o coração do governo, a crise política não será facilmente superada. A razão de todo o mal foi acreditar que pela causa, pelo partido, tudo era permitido. O PT é um partido autoritário, de tendência absolutista e levemente bolchevique, vítima do seu próprio sucesso. E alguns intelectuais deveriam deixar o "silêncio obsequioso" em que vivem para defender a democracia" Porque não é néscio nem ingênuo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tinha de saber que havia mais coisas entre o céu e a terra do que seus amigos dizem que sabia, mas será melhor para o País que ele permaneça no governo até o último dia do mandato, a menos que fatos comprometedores sejam descobertos. Se assim for, "paciência, a Constituição deverá ser cumprida".

Estas são algumas das principais conclusões do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de 74 anos, ao analisar o cenário político e a crise que há quase três meses assombra o Brasil. Na sala de seu confortável apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo, entre quadros de Joan Miró, Cândido Portinari e Salvador Dali, ele concedeu esta entrevista ao Estado:

Qual é o tamanho desta crise?

Não sei de crise tão extensa quanto esta em toda a história republicana. O presidente Lula tem sido poupado, o que a torna diferente das grandes crises anteriores, como a do Getúlio (Vargas) ou a do (Fernando) Collor. Mas o número de pessoas envolvidas, a abrangência de órgãos públicos, a participação direta da cúpula do partido em manobras escusas e as conexões com bancos privados são inéditos.

Como superá-la?

Por sua própria extensão esta crise tornou-se de difícil superação. Como atingiu o coração do governo e do partido reinante, a primeira condição para escapar dela seria o presidente assumir que não navega em mar de almirante. Requereria, há tempos, ação rápida, afastando os suspeitos - o que não fez. A esta altura, creio que é tarde: houve quebra de confiança no próprio presidente. Tudo vai depender de se encontrarem ou não mais fatos comprometedores. Mesmo sem eles, a opinião pública espera a punição dos parlamentares envolvidos nos escândalos e dos pagadores de propina. Ninguém mais acredita na versão "dinheiro de campanha".

A crise se dá em momento de relativa tranqüilidade. Por quê?

Tranqüilidade econômica, social, externa, não tem nada atrapalhando. Nesse aspecto, isso me lembra o Jânio. O Jânio caiu quando não havia crise nenhuma. Caiu por intrigas palacianas e por ele próprio. É que as pessoas têm uma visão economicista. Acham que vão ganhar a eleição porque a economia vai bem. É bem mais complicado que isso. Há o fator político e política implica legitimidade, capacidade de abrir horizontes, respeitabilidade... Essa crise é do PT e do governo. Criaram uma situação de descrédito ao permitir a utilização de meios ilícitos para financiamento. Isso é muito grave.

O presidente Lula disse que não repetirá Vargas, João Goulart ou Jânio Quadros. Será como Juscelino, paciente. Acha que ele conseguirá?

Essas comparações são descabidas. Como críticas a pessoas que tiveram fins tão trágicos é muito triste. É sinal de que ele anda pensando nessas coisas.

O sociólogo e ex-petista Francisco de Oliveira diz que o PT foi dominado por "gangues", que o presidente Lula sabia de tudo e está na hora de os intelectuais deixarem de ser complacentes com Lula. Concorda?

Concordo inteiramente. Vários desses intelectuais me atacaram tanto e agora calam em silêncio obsequioso? E quando vão falar, fazem como a (filósofa) Marilena Chaui, que cometeu duas impropriedades. Primeiro falou em "artimanhas do PSDB" na questão da economia, como se a realidade não tivesse mudado. Segundo, disse que o erro foram as alianças. Ora, quem fez a corrupção não foram os aliados, eles foram corrompidos. Não dá para fugir desta questão: o problema foi provocado pelo PT. O que ela falou não tem sentido. Era melhor ter ficado calada. Alguns intelectuais se especializaram em dar opinião sobre matérias que não dominam. Falam, com a autoridade de que dispõem na sua área, de assuntos que não conhecem. Não gosto disso.

Olhando um pouco adiante, o que o senhor consegue ver?

Vejo nuvens carregadas. O sistema político que se estava formando baseava-se em dois partidos eventualmente capazes de construir pólos de poder e governabilidade. O futuro desse arranjo vai depender da crise do PT, que é grande. Será que ele ainda aglutinará o que aqui se chama de "esquerda" ou sua desmoralização afastará do partido estes segmentos? Neste caso, o PSDB poderá recolher parte do eleitorado desiludido?

O Brasil parece sofrer de corrupção crônico-endêmica. O que fazer?

A corrupção foi endêmica no passado em muitas democracias avançadas. Até hoje há restos dela em alguns países. Com o tempo, com punições e rigores legais, a corrupção diminui, embora seja difícil acabar com ela totalmente. O grave no caso atual é que há elementos novos na corrupção: ela se organizou em uma rede que tem apoio em uma visão política do segmento até agora dominante no PT. Como o PT está no governo, isso ampliou as possibilidades do uso de dinheiro também para manutenção e expansão do poder. De endêmica a corrupção estava passando a sistêmica.

O presidente Lula disse que um presidente não sabe de tudo o que acontece. Concorda com ele?

É verdade que um presidente nem sempre sabe de tudo. O País é grande, a máquina pública também. Mas o presidente lê jornais, vê TV. E conta com assessores especialmente para informá-lo sobre o que ocorre, além de seus interlocutores políticos. Assim, mesmo sem saber dos detalhes, sabe o rumo das coisas. As pessoas falam muito com os presidentes. O presidente deve saber ouvir, jogar fora a intriga e usar a boa informação. Para isso precisa ser autoconfiante, ouvir as críticas sem inibi-las e não acreditar que sabe tudo ou que está sempre certo.

Alguém tem coragem de dizer ao presidente: "Cuidado, estão roubando... é preciso fazer alguma coisa"?

Pergunte à Ana Tavares (secretária de Imprensa nos dois mandatos de FHC) ou ao Clóvis Carvalho (chefe da Casa Civil) se eles teriam ou não coragem de me dizer que alguém estaria roubando. Estou certo de que a resposta será positiva.

Qual é o antídoto mais eficaz contra os males do poder?

Faz muito tempo que os fundadores da democracia americana - para não falar de Montesquieu - pregavam os "pesos e contrapesos" como partes fundamentais da democracia. O maior mal do poder é o poder absoluto, existente de fato ou na imaginação dos poderosos. O PT sempre teve o sonho da hegemonia, que se transforma facilmente em busca do monopólio de poder. Não é de estranhar que o presidente acabasse por acreditar nisso. Cada vez que eu o ouço dizendo uma platitude com ar feliz, ou descobrindo a pólvora com ar auto-suficiente, dizendo "esta é a primeira vez na história deste país que...", penso com meus botões: falta quem o advirta, quem conheça um pouco de história, quem o ajude a comparar para ver que por mais que faça não dá para refazer o Brasil em dois anos. Ou é ingenuidade ou pretensão. Nos dois casos, não é postura de um presidente.

Quais são os riscos de desconexão de um presidente com a realidade, quando é muito grande o fascínio pelo poder e pelas delícias que proporciona?

Se o presidente não tem convicções sólidas, se não percebe que as chamadas "delícias do poder", que não são tantas assim, passam, se ele se deixa levar pela vaidade boba - há as que não são bobas - se ele se acostumar com um séquito de bajuladores, acaba desligado da vida real. É preciso que um presidente encontre quem tenha a franqueza para chamar-lhe a atenção cada vez que entre em devaneios de plenipotência.

Acha que o presidente Lula sabia?

Não posso dizer que o presidente sabia tudo, mas como não o considero néscio nem ingênuo, de um modo geral tinha que saber que havia mais coisas entre o céu e a terra do que seus amigos dizem quem ele sabia.

O impeachment desapareceu dos discursos. Lula é inocente ou a oposição acha mais fácil esperar 2006?

Nem uma coisa nem outra. Já disse que de algo ele sabia. Mas saber não é suficiente para incriminar alguém: não há evidências de sua participação nos casos apontados. Impeachment é decisão política muito séria. Precisamos pensar em suas conseqüências para o Brasil e para o jogo político futuro, inclusive eleitoral. Entretanto, se aparecem dados que mostrem a responsabilidade presidencial direta, gostemos ou não e sejam quais venham a ser as conseqüências políticas, há que respeitar a Constituição.

E a economia, agüenta até quando?

Se houver fatos novos e graves, que eu torço para que não aconteçam, certamente haverá flutuações no mercado acionário e nos diversos títulos. Mas a chamada economia real e as contas do País estão em bom estado, sem falar na economia mundial que registra dados positivos como não se via há 40 anos.

O seu governo praticou uma política de juros altíssimos, mantida com perfeição e esmero pelo atual governo. Se fosse presidente outra vez, mudaria alguma coisa?

As taxas de juros durante meu governo chegaram a superar as atuais, mas em circunstâncias diferentes e específicas: havia ataques especulativos ao real. Neste momento isso não ocorre. Mesmo quando no primeiro mandato a desvalorização da taxa de câmbio era pequena e os juros foram puxados para cima para manter o fluxo de entrada de dólares, havia uma razão para manter os juros elevados: a memória inflacionária era curta e não se tinha o equilíbrio fiscal mínimo desejável. Neste governo, com boas condições econômicas no mundo e domésticas, depois da manutenção das mudanças que introduzimos, as taxas de juros foram para as nuvens e continuam nelas pela síndrome da luta contra a inflação. Há exagero. Se eu tivesse força decisória, procuraria rever, com cuidado, tal situação.

A economia do País resistiria a mudança brusca no cenário externo?

Acho que os colchões protetores da nossa economia estão muito mais fortes do que no passado. Um refluxo traria conseqüências nas exportações e eventualmente poderia reduzir os investimentos, mas não acredito que isso desorganize a economia de forma dramática.