Título: Ônibus-biblioteca resiste na periferia
Autor: Edney Cielici Dias
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/08/2005, Metrópole, p. C6

Apesar do veículo precário, projeto de acervo sobre rodas idealizado pelo escritor Mário de Andrade há 70 anos mantém público fiel

Quem passar pela Praça José Boemer Roschel numa quarta-feira há de notar um velho ônibus-biblioteca da Prefeitura, com um toldo aberto e mesinhas de atendimento do lado de fora. É uma área comercial da periferia da zona sul de São Paulo, a Vila São José (distrito de Cidade Dutra), com um vaivém constante de gente. As pessoas enchem as lojas de comércio popular e também o ônibus que, com um acervo de 3 mil livros, atrai um público formado na maioria por jovens. O veículo é uma doação da extinta Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), cedido já fora de uso à Prefeitura, em 1990. O projeto de ter uma unidade móvel para levar livros à população é, no entanto, bem mais antigo.

Há 70 anos, em agosto de 1935, o escritor Mário de Andrade (1893-1945), então diretor do Departamento de Cultura de São Paulo e, na prática, o primeiro secretário da área, enviava despacho ao prefeito Fábio Prado com o projeto do veículo da Biblioteca Circulante.

"Em vez de esperar em casa pelo seu público, vai em busca do seu público onde este estiver", justificou o escritor. Foi então aprovado o modelo de caminhonete que seria construído pela Ford e proporcionaria "aos freqüentadores dos parques uma leitura imediata, dando ao far-niente uma orientação cultural", nas palavras de Mário de Andrade.

Essa primeira forma do serviço, em que a caminhonete-biblioteca estacionava em lugares como o Jardim da Luz, Praça da República e o Largo da Concórdia, funcionou até 1942. Só foi interrompida pelas contenções impostas à Prefeitura pela 2ª Guerra Mundial.

Em 1935, São Paulo tinha pouco mais de 1 milhão de pessoas. Desde então, o número de habitantes foi multiplicado por dez, a mancha urbana se estendeu para todos os lados e a migração dos mais pobres para as periferias se consolidou

Na pequena praça da Vila São José, além do ônibus, uma unidade da Polícia Militar faz plantão. O local não é apropriado para o far-niente. As pessoas circulam apressadas por ali. Gente que faz compras, crianças e adolescentes que saem da escola. Tanto movimento e agitação não convida a sentar, pegar um livro e simplesmente deixar o tempo passar. Se a idéia romântica da leitura não parece adequada para a área, o velho ônibus-biblioteca está no lugar certo para cumprir seu objetivo inicial, de alcançar os leitores da cidade onde quer que eles estiverem.

Em 1935, vivia-se um período de luzes: a Universidade São Paulo havia sido criada no ano anterior e existia grande entusiasmo com a difusão cultural. O departamento não era obra exclusiva de seu diretor, Mário de Andrade, mas sim fruto de um projeto de intelectuais ligados a ele, como Sérgio Milliet, Paulo Duarte, Rubens Borba de Morais e Antônio de Alcântara Machado. Os princípios traçados por eles, ao contrário do equipamento utilizado atualmente, não envelheceram. O ônibus-biblioteca visita semanalmente sete pontos da periferia e faz, em média, 6 mil atendimentos por mês - um número surpreendente quando se considera que algumas bibliotecas fixas não chegam nem à metade dessa marca. O resultado é ainda mais notável porque o serviço fica aberto ao público durante apenas quatro horas por dia, das 10h30 às 14h30. A bibliotecária Miriam Minotti Menossi informa com certo orgulho que foram emprestados cerca de 13 mil livros em julho - além deles, a população retirou mais de 3 mil revistas e gibis.

"Ele vai para onde não existe nada em termos culturais, onde a demanda é forte", explica Maria Zenita Monteiro, diretora do Departamento de Bibliotecas da Prefeitura. A autora de livros infanto-juvenis May Shuravel, que acompanhou o serviço como escritora convidada, concorda. "O ônibus, diferentemente das bibliotecas tradicionais, não assusta as pessoas. Os livros expostos atraem o público." Mas a falta de investimento é também evidente. "Trata-se de um trabalho excepcional, mas o projeto está largado às traças", avalia May.

O serviço foi marcado ao longo dos anos por descontinuidade e altos e baixos. Depois que parou em 1942, só foi retomado em 1979, com uma Kombi cedida em comodato pelo Instituto Nacional do Livro. A iniciativa durou oito anos, até que o veículo se desgastou.

Na gestão de Luiza Erundina (1989-92) na Prefeitura, o projeto foi retomado. Em 1991, o sistema passou a contar com dez ônibus, atendendo cerca de 30 pontos da cidade. No decorrer dos anos, foi caindo novamente. Existem hoje quatro ônibus - os outros seis viraram sucata -, mas só é feita uma saída diária. Há livros no acervo para até dez veículos. Mas faltam veículos, recursos para manutenção e equipe. O objetivo do departamento é pôr os quatro ônibus remanescentes para rodar, com novos pontos, nos próximos meses. "Quanto mais tiver, mais retorno vai haver", diz Zenita. Se isso ocorrer, a herança iluminista de Mário de Andrade circulará com mais intensidade nas periferias.