Título: Colapso do euro começa a deixar de ser impossível
Autor: Anatole Kaletsky
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2005, Economia & Negócios, p. B7

Houve um tempo em que a admissão de Kenneth Clarke de que "o euro foi um fracasso" poderia ter dominado as manchetes por semanas. Poderia até mesmo ter mudado o curso da história da Grã-Bretanha. Se Clarke tivesse sido visionário o bastante, há 15 anos, para reconhecer os defeitos fatais do projeto da moeda única, os conservadores poderiam ter sido poupados da humilhação da Quarta-Feira Negra e da luta interna suicida em torno do Tratado de Maastricht. Eles poderiam estar governando o país até hoje. Se o ex-ministro das Finanças tivesse admitido humildemente, há cinco anos, que estava errado sobre o euro, certamente seria hoje o líder da oposição, e os conservadores poderiam estar disputando o poder com os trabalhistas num Parlamento empatado. Nesta semana, porém, a confissão pública de Clarke sobre o fracasso do euro foi tão irrelevante para o futuro quanto o solilóquio final de Macbeth comparando-se a "uma sombra ambulante, um pobre ator que se pavoneia e agita em seu turno no palco e depois não é mais ouvido".

No entanto, embora os arrependimentos de Clarke sobre o euro possam não ter mais nenhum interesse na Grã-Bretanha, eles nos lembram de algo extremamente significativo sobre o mundo lá fora. O euro vivia uma lua-de-mel política desde quando fora introduzido, há quatro anos.

Embora o desempenho econômico da Europa tenha passado de mal a pior quase desde o dia em que o euro foi lançado, em janeiro de 1999, nenhum político respeitável se atrevia a culpar a moeda única ou criticar o projeto de algum modo. Esse tabu agora caiu.

Na Itália, Silvio Berlusconi encorajou conscientemente um movimento antieuro destinado a culpar, pelos problemas do país, Romano Prodi, o homem que levou os italianos à moeda única e por acaso é seu principal oponente político nas próximas eleições gerais. Na Holanda, na França e na Alemanha, o euro começou a ser responsabilizado pela inflação, pela instabilidade econômica e pelo desemprego - e, embora algumas dessas acusações possam não ser intelectualmente sustentáveis, ninguém pode negar que o Banco Central Europeu (BCE) tem tido mau desempenho, certamente se comparado ao Federal Reserve (banco central dos EUA), ao Banco da Inglaterra, ao Banco do Japão ou ao castrado BundesBank alemão.

Por que tudo isso importa? Porque o euro, como qualquer outro papel-moeda, é apenas uma ilusão. Seu poder de governar a vida das pessoas e motivar o esforço depende inteiramente de uma suspensão da descrença. As pessoas não precisam só acreditar que estes pedaços de papel sem valor podem ser trocados por bens e serviços de valor. Elas também precisam acreditar que seu papel-moeda intrinsecamente sem valor continuará a ser honrado indefinidamente pelo mundo inteiro. Esta fé, por sua vez, repousa essencialmente na crença de que o valor do papel-moeda será sustentado por um governo com o direito e a capacidade de cobrar impostos de uma nação rica.

No entanto, se a União Européia não vai evoluir rumo a uma união política em escala total, quem exatamente vai garantir o valor do euro? E se a participação na zona do euro nunca será equivalente à participação na União Européia, com a Grã-Bretanha, a Suécia, a Dinamarca e outros membros do bloco permanecendo fora, por que um governo, seja da Itália ou da Alemanha, que achasse inconveniente usar o euro não poderia simplesmente sair e recriar sua própria moeda nacional?

CHANTAGEM

O repentino surgimento de questões como essas não significa necessariamente que a zona do euro vá se desintegrar ou que o euro vá deixar de existir, mas significa que tais perspectivas poderão em breve ser consideradas seriamente. E, se os investidores começarem a se preocupar com a viabilidade do projeto da moeda única no longo prazo, cenários do colapso total do euro surgirão de repente.

O mais plausível desses cenários é a Itália abandonando o euro, sob pressão do crescente desemprego, da economia fraca e da implosão das finanças públicas, exatamente a mesma combinação de pressões que obrigou o país a deixar o ERM (sistema europeu de taxas de câmbio) em 1992. Se a possibilidade da retirada italiana fosse levada a sério pelos mercados, os portadores estrangeiros da dívida pública de 1,5 bilhão da Itália sofreriam enormes perdas, já que o governo italiano simplesmente transformaria seus títulos em "novas liras", e sairia legalmente ileso dessa conversão.

De fato, os riscos financeiros da retirada da Itália são tantos para o sistema financeiro europeu que o governo italiano pode agora estar em posição de chantagear o BCE para que reduza as taxas de juros e desvalorize o euro simplesmente ameaçando se retirar. Tal relaxamento por parte do Banco Central Europeu, na verdade, seria uma resposta racional aos atuais problemas econômicos na zona do euro. Mas é aqui que uma instituição monetária multinacional encontraria um problema fatal.

Com a percepção de que o BCE cedera à chantagem italiana, a sobrevivência do euro enfrentaria uma ameaça nova e ainda mais grave: um colapso da confiança pública na Alemanha e na Holanda, onde políticos populistas começariam a responsabilizar a fraqueza do Banco Central Europeu pelos problemas econômicos de seus países. Políticos direitistas alemães e holandeses bem poderiam começar a exigir uma moeda mais forte - e ameaçar abandonar o euro se o BCE continuasse a ceder às exigências "inflacionárias" da Itália.

É possível imaginar uma situação em que os alemães e holandeses exigissem uma política mais firme para punir a Itália e os italianos exigissem uma política mais branda para manter sua economia solvente - com ambos os lados ameaçando abandonar o euro se suas exigências não fossem atendidas. O jogo então estaria realmente perdido para o euro e o BCE.

Um colapso do euro parece altamente improvável em um ou dois anos. Mas qualquer um que ainda acredite que esse colapso é impossível deveria ter em mente as lições do colapso do ERM, das desvalorizações da libra, do franco e da lira nos anos 60, do colapso do sistema Bretton Woods baseado no dólar no início dos anos 70 e do abandono do padrão-ouro antes da guerra. Em confrontos entre política e mercados financeiros, os eventos podem ir direto do "impossível" ao "inevitável" sem nem ao menos passar pelo improvável.