Título: A galinha cisca pra frente
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/08/2005, Economia & Negócios, p. B2

O presidente do Banco Central dos Estados Unidos (Fed), Alan Greenspan, adverte: há no mercado global uma nova bolha especulativa prontinha para estourar - ou não. Não é muito diferente do que outros já disseram. Coisas esquisitas estão acontecendo. Uma dessas esquisitices é o fato de que já não são os países ricos que investem nos países emergentes. O fluxo principal está invertido; é galinha que, em vez de ciscar para trás, cisca para frente, que era como Stanislaw Ponte Preta se referia ao que acontecia em Niterói.

Desta vez são os países asiáticos, especialmente a China, que despejam dinheiro nos países ricos. Eles acumulam reservas gigantescas com as receitas de suas exportações e investem seus dólares em títulos do Tesouro dos Estados Unidos.

À medida que se atiram sobre os títulos de longo prazo, os países asiáticos produzem outro efeito de conseqüências graves: a procura de títulos é tão alta que os juros de longo prazo se mantêm achatados, apesar da alta dos juros de curto prazo.

Os juros de longo prazo são os mesmos que prevalecem nos empréstimos hipotecários (para compra de imóveis) nos Estados Unidos e, por isso, os negócios com imóveis não param de crescer. Greenspan tem chamado essa esquisitice de "conundrum" (enigma).

Enfim, os investimentos asiáticos não estão indo para a atividade produtiva; estão indo para o consumo e para a especulação imobiliária. A bolha ganhou dinâmica própria. Os americanos não param de levantar empréstimos hipotecários, não mais exclusivamente para comprar condomínios na Flórida e na Califórnia, mas para ter mais dinheiro para torrar. Uma das explicações para o consumo persistentemente elevado de gasolina, mesmo com o galão a quase US$ 3, é a de que o dinheiro chinês financia a gastança.

Processos desse tipo desenvolvem trajetória de tipo clássico: formam bolhas que incham e incham até que, pufffff, cumprem as leis da resistência dos materiais.

Isso já aconteceu com o comércio de bulbos de tulipas na Holanda (1620-1637), com as participações da Companhia dos Mares do Sul na Inglaterra (1711-1720), a corrida imobiliária na Califórnia (1920-1925) e a febre das ações nos Estados Unidos (de 1926 ao crash de 1929). A mais recente especulação com imóveis aconteceu no Japão ao longo dos anos 80. Desembocou em profunda recessão, de cujos efeitos a economia japonesa talvez ainda não se tenha livrado.

No período 1996-2000, Greenspan advertia reiteradamente para os perigos da "exuberância racional" das bolsas de valores. Agora, cinco meses antes de se aposentar (em 31 de janeiro), resolveu quebrar seu silêncio sobre a bolha, talvez para evitar que seus biógrafos o acusem de omissão.

O pressuposto é o de que os preços dos imóveis subam tanto que as prestações fiquem insuportáveis. Será a senha para a decolagem dos juros de longo prazo. Como a maioria dos contratos hipotecários prevêem juros flutuantes, os proprietários dos imóveis comprados a preços de pico terão dificuldades crescentes para honrar suas dívidas e passarão nos cobres o que tiverem à mão: títulos, ações, ouro, o que for. Daí o risco de que os ativos dos países emergentes sejam alijados ao mar junto com a carga dos navios ameaçados de naufrágio.

Faz parte da síndrome das catástrofes que as advertências sejam ignoradas, como aconteceu com as profecias de Cassandra às vésperas da destruição de Tróia. As pessoas perdem a cabeça, só ouvem o que lhes convém e tendem a acreditar em que a festa apenas começou.

Os especialistas já não discutem se o fim está próximo. Discutem a natureza do desfecho, que pode ser desde o pouso suave até a precipitação no despenhadeiro. Na semana passada, Paul Krugman parecia temer pelo pior, a partir de abril-maio do ano que vem. Ontem, Otaviano Canuto, nosso homem na diretoria do Banco Mundial, disse que "não haverá estouro da bolha, mas apenas o arrefecimento do frenesi imobiliário".

Do alto da autoridade acumulada em 18 anos de mais acertos do que de erros, Greenspan oferece uma vantagem adicional: sua advertência pode engatilhar um processo de correção capaz de produzir certo esvaziamento da bolha. Resta saber se há tempo para isso.