Título: Uma voz no Superdome:'Estamos urinando no chão. Parecemos animais'
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/09/2005, Internacional, p. A16

Uma menina de 2 anos dorme numa poça de urina. Embalagens de crack se espalham pelos banheiros. Sangue mancha as paredes perto de máquinas de vender arrebentadas por adolescentes. O Superdome da Louisiana, estádio de futebol americano que já foi um poderoso marco de arquitetura e engenhosidade, tornou-se o maior abrigo de furacão de New Orleans na véspera da chegada do Katrina na segunda-feira. Na quarta-feira, ele havia degenerado para um horror indizível.

Cerca de 16 mil pessoas foram acomodadas ali. Algumas centenas foram retiradas do estádio na quarta-feira, e ônibus retirariam ontem os remanescentes. Segundo estimativas, o Katrina é provavelmente um dos furacões mais caros para a indústria americana de seguros.

"Estamos urinando no chão. Parecemos animais", disse Taffany Smith, de 25 anos, embalando o filho Terry, de 3 semanas. Na mão direita ela carregava uma garrafa meio cheia de alimento lácteo para bebês fornecido pelos socorristas. Os produtos para bebês estão escasseando. Uma mãe disse que recebeu duas fraldas descartáveis e lhe recomendaram que as raspasse quando ficassem molhadas, para usar de novo.

Pelo menos duas pessoas, uma delas uma criança, foram violentadas quando o estádio ficou às escuras à noite. Três pessoas morreram, entre elas um homem que saltou de uma altura de 15 metros, dizendo que não tinha motivo para viver.

O furacão deixou a maior parte do sul da Louisiana sem energia. O estádio, no distrito comercial central de New Orleans, não foi poupado. O sistema de ar condicionado falhou imediatamente, e um calor de rachar encheu o domo. Um gerador de emergência manteve algumas luzes acesas, mas logo parou.

Não há condições sanitárias. O fedor é insuportável. O abastecimento de água da cidade, que foi mantido até domingo, parou quarta-feira cedo. As privadas do Dome começaram a transbordar. "Há fezes até pelas paredes", disse Bryan Hebert, de 43 anos, que chegou ao estádio segunda-feira.

O Superdome está sendo patrulhado por mais de 500 homens da Guarda Nacional da Louisiana, muitos deles com metralhadoras, enquanto pessoas suadas e malcheirosas se comprimem contra as barricadas de metal que as impedem de sair, gritando quando os soldados passam: "Ei! Precisamos de mais água!" A maioria recebe duas garrafas de água de meio litro por dia e duas refeições em caixas: espaguete, frango tailandês ou jambalaya (arroz à moda da Louisiana).

Um homem tentou escapar quarta-feira saltando por cima da barricada e correndo para as ruas. O homem estava desesperado, disse o sargento Caleb Wells da Guarda Nacional.

Tudo que ele conseguira trazer para o Superdome foi roubado. Sua casa provavelmente estava destruída, seus parentes, mortos. Os guardas o trouxeram de volta.

A maioria dos soldados dorme apenas duas ou três horas por noite, e muitos deles também perderam as casas. Eles dizem que estão fazendo o melhor que podem com os poucos recursos disponíveis e a falta de infra-estrutura. Mas já se tornaram o alvo da fúria de muitos refugiados.

"Eles tiveram a impressão de que nós temos tudo e eles nada", disse um sargento. "Eu digo a eles: nós estamos no mesmo barco. Estamos vivendo como vocês. Alguns compreendem, mas outros perderam a razão."