Título: Bush: 'Tolerância zero'
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/09/2005, Internacional, p. A16

Em meio a tiroteios, saques e uma população desesperada, New Orleans resvalou para a anarquia e caos ontem diante da incapacidade das autoridades locais, estaduais e federais de coordenar suas ações e retirar da cidade dezenas de milhares de sobreviventes sedentos e famintos, quatro dias depois de serem surpreendidos por um dos maiores desastres naturais da história dos EUA. No início da tarde, havia informações sobre tiroteios até mesmo num dos hospitais da cidade. Em um dos casos mais graves de saque, um bando armado forçou uma equipe médica a abandonar o bote no qual transportava um paciente para roubar o barco. "Se eles foram capazes de jogar comida de helicópteros em Bagdá, deveriam ser capazes de fazer o mesmo em New Orleans", disse a emissora de TV CNN uma mulher que aguardava a chegada de ajuda no centro de convenções da cidade.

Ela e outros milhares de residentes foram desalojados de suas casas pela inundação que se seguiu à passagem do furacão Katrina, depois que dois trechos dos diques que protegem a cidade, situada abaixo do nível do mar, cederam. Era uma das raras pessoas brancas em meio à multidão de negros e mulatos - que não acataram a ordem de retirada da cidade, dada pela governadora da Louisiana, Kathleen Blanco, no sábado. Não saíram da cidade porque não têm automóvel nem dinheiro para pagar um hotel. Embora a maioria da população branca que deixou a cidade não tenha casa, escola ou trabalho para os quais retornar, as penosas imagens de New Orleans lembravam mais cenas de desastres em países do Terceiro Mundo. E levantavam óbvias dúvidas sobre o ingrediente racial entre as vítimas da catástrofe.

A inexplicável demora na chegada do socorro imediato às pessoas que esperavam ajuda nas poucas partes da cidade não tomadas pelas águas, a lentidão da remoção dos refugiados e a ausência de tropas para repor um mínimo de ordem punham em questão a estratégia trombeteada pela administração de George W. Bush - depois dos atentados do 11 de Setembro - de preparar o país para uma catástrofe de larga escala provocada por um atentado terrorista numa área urbana.

Primeiro teste real do novo sistema que supostamente teria tornado os EUA mais aptos a responder a emergências, o Katrina e a inundação deixam claro que havia mais retórica do que dispositivos concretos prontos a ser acionados.

Devastada, New Orleans estava entregue ontem à ação de grupos armados de saqueadores, enquanto as autoridades federais anunciavam o reforço do contingente das forças de segurança para evitar que a cidade semi-submersa se transforme em terra de ninguém. Bush anunciou uma política de "tolerância zero" em relação aos saques não só em New Orleans - que desde segunda-feira está sob lei marcial -, como em todas as áreas atingidas pelo furacão.

Empenhadas nas operações de emergência para resgatar sobreviventes e atenuar o pesadelo sanitário em que se converteram os improvisados centros de refugiados, as autoridades não têm tempo para contar os mortos na cidade considerada como o berço do jazz. Kathleen Blanco reiterou que a cifra de mortes é estimada em "milhares", mas destacou que a prioridade é a ajuda aos sobreviventes e a manutenção da ordem.

O Pentágono enviará um reforço de 24 mil soldados para os Estados da Louisiana e Mississippi. "Implementaremos a política de tolerância zero para as pessoas que violam a lei durante uma emergência como esta", disse Bush ao programa Good Morning America, da TV ABC. "Seja em relação aos saques, aos aumentos abusivos de preços de serviços, à malversação de doações da caridade ou à fraude com seguros." Um grupo de 300 soldados recém-vindos do Iraque chegou ontem a New Orleans com permissão para atirar contra saqueadores. "E espero que façam isso", disse a governadora Kathleen Blanco. O Congresso suspendeu suas férias para aprovar um pacote de ajuda de emergência de US$ 10 bilhões (ler mais no Caderno de Economia).