Título: Questão de escolha
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/09/2005, Economia & Negócios, p. B2

O governo Lula prepara, afinal, os decretos que irão regulamentar a adoção de salvaguardas contra a entrada indiscriminada de produtos chineses. O problema é que coisas mais graves estão acontecendo. Contra elas, não bastam salvaguardas. Trata-se de direito adquirido pelo Brasil, previsto nas regras de entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001. Ao Brasil, cabe agora definir os termos sob os quais pode defender-se contra procedimentos inaceitáveis de comércio pela China.

Como em muitos outros assuntos, o governo Lula vem mostrando posições dúbias em relação à China. Iniciou o mandato crente de que um punhado de poderosos países emergentes, como China, Índia, Coréia, Austrália e África do Sul, fariam frente comum com o Brasil nas principais questões do mercado internacional, bastando para isso certa distribuição de sorrisos via Itamaraty.

Nessas condições, tratou de atrair a China não só para a formação de uma frente contra os países ricos dentro do Grupo dos 20, mas também para definição de um modelo próprio de TV digital. Em 2004, sem garantir nada em troca, o governo Lula reconheceu a China como economia de mercado, status que dificulta a tramitação de processos unilaterais contra práticas desleais de comércio.

Logo se viu que os países emergentes vêem o Brasil como potencial concorrente e não mostram particular interesse por tricotagens ideológicas. Querem mais é empurrar mercadorias para as prateleiras globais. Do Brasil, também pretendem conquistar cada vez mais encomendas de seus manufaturados e arrancar acordos de suprimento de matérias-primas.

Há alguns meses, por exemplo, a China queria que o governo brasileiro autorizasse compras de terras agricultáveis, a preços de bacia das almas, que trataria de cultivar com o objetivo de produzir alimentos e matérias-primas que depois seriam despachadas em ligação direta com suas indústrias. As conversações abortaram, mas não deixaram dúvidas sobre o tipo de jogo pretendido.

De todo modo, nada mais acertado do que adotar as salvaguardas previstas nos tratados. E é bom que todos os setores prejudicados sejam atendidos. O problema é que esse tipo de providência não pode ir muito longe. Começa pelo fato de que as salvaguardas apenas protegem, e protegem mal, o mercado interno. Protegem mal não só porque são temporárias, mas também porque não coíbem o contrabando e outras práticas condenáveis de comércio, como a pirataria e o subfaturamento das importações.

Mais do que isso, as salvaguardas não evitam que o mercado externo brasileiro seja comido pelas beiradas. Pode-se reduzir a entrada de produtos têxteis, brinquedos, calçados, ferros de passar roupa, alto-falantes e motores estacionários provenientes da China. Mas não se pode evitar que, jogando como jogam, os chineses tomem o mercado brasileiro de exportações desses mesmos produtos. E não haverá salvaguarda que mude esse fato.

Está em curso importante mudança na divisão do trabalho mundial. A indústria de transformação vai migrando mais rapidamente do que se imaginava para a Ásia, onde prospera com baixíssimos custos de mão-de-obra, reduzida carga tributária, regras razoavelmente estáveis de jogo, um mercado regional potencialmente gigantesco e uma enorme agressividade comercial, nem sempre limpa.

Essas novas potências sabem o que pretendem, têm plano estratégico e criam políticas destinadas a cumprir propósitos. A China está exportando R$ 410 bilhões e cresce a 9,5% ao ano; a Índia prepara-se para ser grande potência em prestação de serviços; e ainda podíamos falar da Coréia do Sul, de Taiwan, de Cingapura, da Tailândia e da Malásia.

Enquanto isso, o governo brasileiro não consegue nem sequer definir o gestor do fundo garantidor das PPPs, que vai permitir investimentos em infra-estrutura. Reformas que flexibilizem os custos trabalhistas, baixem a carga tributária, estimulem a importação de máquinas - tudo isso e muito mais, vão ficando para trás. Em vez disso, discute-se o quê? Discutem-se medidas defensivas contra produtos chineses, as barbaridades do publicitário Marcos Valério e o melhor tempero para pizzas a ser produzido pelo Congresso. A escolha é nossa.