Título: A tempestade depois da tempestade
Autor: David Brooks
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/09/2005, Internacional, p. A22

Furacões vêm em duas ondas. Primeiro, vem a tempestade e, depois, vem o que o historiador John Barry chama de "tempestade humana" - as recriminações, o conflito político e a batalha sobre a compensação. Enchentes levam à superfície da sociedade, o modo como as coisas haviam se estabelecido. Elas expõem as estruturas de poder subjacentes, as injustiças, os padrões de corrupção e os desequilíbrios desconhecidos. Quando se passa em revista as turbulências meteorológicas da história americana, é impressionante como muitas vezes uma turbulência política acontece em seguida. Em 1889, na Pensilvânia, uma grande enchente levou a maior parte de Johnstown. Testemunhas assistiram a centenas de pessoas presas em uma ponte pegando fogo, obrigadas a escolher entre morrerem queimadas ou se atirar nas águas caudalosas e se afogarem.

A enchente era tão anormal que o país parecia ter problemas em assimilar o que havia acontecido. A mídia nacional estava repleta de exageros loucos e invenções: histórias de rios repletos de cadáveres, de crianças que morreram enquanto brincavam de passa-anel e foram encontradas com as mãos espalmadas uma contra a outra e com os sorrisos ainda em seus rostos.

Os preconceitos abundavam. Os húngaros eram parecidos com os imigrantes mexicanos ilegais de hoje - trabalhadores que aceitavam trabalhos que ninguém mais queria. Os jornais traziam relatos de gangues de húngaros que cortavam as mãos de mulheres para roubar seus anéis. "Húngaros bêbados dançam, cantam, blasfemam e brigam nas ruínas", dizia uma manchete do jornal New York Herald.

Então, como David McCullough apontou em The Johnstown Flood, a fúria pública se voltou contra os milionários de Pittsburgh, cujo lago de pesca do clube que freqüentavam havia secado a cidade. O Chicago Herald retratou os milionários como aristocratas romanos, buscando prazer enquanto os pobres morriam como bestas no Coliseu.

Antes mesmo da enchente, estava aumentando o ressentimento público contra os industriais recém-enriquecidos. Estavam crescendo os protestos contra os trustes, a industrialização e as novas concentrações de riqueza. A enchente de Johnstown cristalizou a ira popular, porque o clube de pesca realmente era parcialmente culpado. A reação ao desastre ajudou a criar condições para o movimento progressista e a quebra do truste.

Em 1900, outra grande tempestade atingiu os EUA, matando mais de 6 mil pessoas em Galveston, no Texas. A tempestade expôs animosidades raciais, porque desta vez histórias (igualmente falsas) varreram a imprensa, acusando os negros de cortar os dedos de cadáveres para roubar anéis de noivado. A devastação acabou com a oportunidade de Galveston de vencer Houston como o principal porto do Texas.

Então, em 1927, a grande enchente do Mississippi se abateu sobre New Orleans. Como Barry escreve em seu relato, Rising Tide, o desastre expôs as relações feudais entre brancos e negros, e revelou sentimentos mesquinhos. Os negros eram recolhidos em campos de trabalho e vigiados por guardas armados. Eles não puderam sair quando as águas subiram. Um barco a vapor quase vazio tocava Bye, Bye, Blackbird enquanto navegava. A violência racista que se seguiu às enchentes ajudou a convencer muitos negros a irem para o norte.

Líderes civis inundaram intencionalmente áreas pobres e de classe média para aliviar a pressão da água sobre a cidade e depois não cumpriram promessas de compensar quem teve as casas destruídas.

Em todo o país, as pessoas exigiam que o governo federal se envolvesse na recuperação, ajudando a preparar o caminho para o New Deal. A elite cívica local se isolou e tornou-se reacionária e New Orleans nunca mais se recuperou de sua vibração pré-enchente.

Gostaríamos de pensar que as histórias de furacões e inundações são sempre histórias de pessoas se unindo para dar ajuda e conforto. E, na verdade, cada uma das grandes inundações americanas resultou em uma resposta popular generosa e inspiradora. Mas as enchentes também são exames cívicos. Entre todas as histórias que recorrentes com cada desastre - relatos de morte repentina e sobrevivência miraculosa, o deslocamento e a doença - há também o teste.

Arranjos cívicos funcionam ou falham. Os líderes agem ou esperam. O que está acontecendo em New Orleans e no Mississippi hoje é uma tragédia humana. Mas observe de perto as pessoas que são vistas vagando, devastadas, ao redor de New Orleans: são na grande maioria negros e pobres. Os distúrbios políticos ainda estão para chegar.