Título: A favor da ética à beira do leito
Autor: Mônica Manir e Ivan Carvalho Finotti
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/09/2005, Aliás, p. J6

"Nos hospitais, com diagnósticos semelhantes ao desse garoto, cotidianamente se deixa morrer." A afirmação de Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília e diretora da ONG Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), mostra que o caso do menino de Franca, cujo pai pede a retirada dos aparelhos que sustentam sua vida, é mais comum do que se imagina. "Já encontrei inúmeras famílias com quadros semelhantes que, por um acordo à beira do leito, decidem pela retirada dos aparelhos ou nem sequer fazem a entubação", diz a doutora em Antropologia e pós-doutora em Bioética. O que muda, no caso de Franca, é a espetacularização da notícia. "O pedido de desligamento de aparelhos ganhou publicidade porque os pais estão brigando entre si. Isso piora o debate porque levanta variáveis que tiram o foco." Em entrevista ao Aliás, Debora Diniz, 35, explica por que é a favor do direito de morrer, mas se posiciona a favor da mãe no caso de Franca. O CASO DE FRANCA

Não tenho dúvida alguma: essa mãe deve cuidar dessa criança. Quando há uma criança ou qualquer pessoa que não tenha legitimamente o estado da razão ou a autonomia reconhecida para manifestar a própria vontade, deve-se pensar em quem melhor representa seus interesses. No caso do garotinho de 4 anos que sofre de uma doença degenerativa sem cura e está sob ventilação artificial em Franca, são os pais. Entretanto, há um dissenso entre eles quanto à retirada ou não do tratamento. O pai quer, a mãe não. Diante disso, eu caminho para uma posição conservadora, no sentido da cautela, por mais que pareça uma absurda obstinação terapêutica. Quem tem cuidado dessa criança, em especial depois da separação, é a mãe. Se os dois desejassem a retirada do respirador, teriam legitimidade. Mas, quando existe um dissenso entre a vida e a morte, não há como garantir a autorização.

TERRI E RAMÓN

O caso de Terri Schiavo é semelhante. Ali, o marido queria a interrupção do tratamento, ao contrário dos pais. Embora ele afirmasse veementemente que Terri lhe manifestara a vontade de interromper um estado vegetativo, caso isso acontecesse um dia, não havia testemunho disso. Então, não concordei com a decisão. Já o espanhol Ramón Sampedro, cuja história foi retratada no filme Mar Adentro, era um sujeito que tinha total compreensão do que significava morrer e do que era a vida com a lesão. Quando mostrei esse filme à comunidade de deficientes com que trabalho, Ramón foi visto por eles como anti-herói. Diziam que não poderia ter pedido a eutanásia, ou seja, a indução deliberada à morte, sem antes ter experimentado a reabilitação. Respondi que não querer a reabilitação faz parte do processo de não querer mais viver. A reabilitação é uma aposta na vida, e ele não desejava mais continuar naqueles termos.

A TORTURA DA EXISTÊNCIA

Mais do que questionar se a eutanásia é ou não legítima, cabe perguntar sobre o limite da medicalização, a fronteira entre o cuidado das pessoas e a tortura da existência. Essa mãe acha que é cuidado; esse pai, que é tortura. O Estado poderia regulamentar o direito de morrer como um direito fundamental, mas traçar essa fronteira é matéria de ética individual. Teremos pais que não aceitam o respirador como condição de existência, enquanto outros aguardam que o filho comece a definhar ou sofra paradas cardíacas seqüenciais para chegar a esse limite. O garoto de Franca iria morrer de uma parada cardíaca causada pela degeneração muscular contínua. Quando é colocado no respirador, não vai mais morrer disso, mas de uma falência múltipla dos órgãos. Vamos substituir a causa mortis e prolongar a vida dele, por mais alguns anos talvez, ligando-o a um aparelho de UTI. O respirador não é tratamento para a síndrome. Isso é uma falácia das mais absurdas. O respirador apenas o mantém em sobrevida. Ao mesmo tempo, se essa mãe que representa o garoto diz que deseja o respirador, quem somos nós para dizer o contrário?

"IR EM PAZ"

Nos hospitais, com diagnósticos semelhantes ao desse garoto, cotidianamente se deixa morrer. Isso não é qualificado como eutanásia. Já encontrei inúmeras famílias com quadros semelhantes ao dessa criança que, por um acordo de ética à beira do leito, decidem pela retirada dos aparelhos ou nem sequer fazem a entubação. Na UTI em que trabalho, fazemos uma junta médica ou uma junta de enfermagem e conversamos sobre o direito desse ou daquele paciente de morrer. Os profissionais biomédicos não vão falar a palavra eutanásia; vão falar "descansar", "ir em paz", "deixar o círculo da vida". Isso é ética à beira do leito. Começamos a mudar toda uma moralidade que cobre e esconde a morte encontrando não eufemismos, mas estratégias que tornam possível falar sobre isso. E precisamos falar mais. Idosos falam. Eles dizem "não quero ficar nessas circunstâncias". Isso é parte de um processo civilizatório e a morte não deve ser vista como fatalidade de surpresa, mas como parte de um planejamento da existência.

MORTE NÃO É FRACASSO

Por trás do maquinário há uma indústria e profissionais que vivem disso, há os planos de saúde... Existe toda uma estrutura em torno da medicalização intensa. Mas também existe a idéia de que a morte é um fracasso. Os profissionais biomédicos não conseguem estabelecer a fronteira entre o fracasso técnico nos procedimentos de devolver a vida a alguém e a experiência da morte como um não-fracasso para o sujeito que sofre. Por isso não entendem quando um sujeito diz: "Eu não quero seu conhecimento nem sua tecnologia. Eu quero morrer". Para esse sujeito, a morte não é um fracasso, é um alívio. Ao mesmo tempo, alguns profissionais também adoram dizer: "Eu salvo vidas". Não. O papel deles é cuidar das pessoas, no campo da saúde ou da doença. E cuidar delas também é deixá-las morrer. Não é matá-las. O profissional não vai matar ninguém porque não decide sobre a vida de ninguém. As pessoas definem a própria vida. E algumas querem morrer.

CRUCIFIXO NO STF

O Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) discute a elaboração de uma resolução que ampare legalmente o médico em casos de doenças incuráveis e em fase terminal. Essa resolução vai dizer o que os médicos podem ou não fazer, mas foge ao campo ético do direito das pessoas. Em que medida entendemos o direito de morrer como um direito fundamental? Isso é uma questão constitucional, é matéria para o Supremo Tribunal Federal, não para conselho de classe. A discussão ainda não chegou ao Congresso pela mesma razão que nos leva a ter um crucifixo na sala da presidência do Supremo. Vivemos num Estado laico, com uma Constituição que garante pluralidade de cultos, com uma separação Igreja/Estado, mas há um crucifixo atrás do presidente do STF, que representa não apenas a marca de uma determinada moralidade, mas nossa incapacidade de lidar com certos temas existenciais. Não temos um projeto de lei ativo no Congresso Nacional sobre eutanásia. O que esse assunto tem de tão pecaminoso que não conseguimos falar sobre ele? O tema da morte é de extrema importância para as religiões como parte de um conjunto de dogmas aos quais, dizem, não nos cabe fazer perguntas. Mas as pessoas fazem perguntas, ao contrário do que os dogmas determinam. As igrejas podem dizer ao seu rebanho, e para os membros do seu rebanho, que eles não decidem sobre vida e morte. Mas eu não faço parte de rebanho; faço parte de um Estado laico. Isso é questão de direitos humanos, e o fórum para direitos humanos é o Supremo Tribunal Federal ou o Congresso Nacional. O que não significa que precisamos ser agnósticos ou não-cristãos para compreender a eutanásia como um direito. Deus pode acolher sua decisão. Não é uma questão de matar Deus para poder deliberar sobre a morte.

PROTEÇÃO DA VULNERABILIDADE

Temos sempre de respeitar os direitos fundamentais, mas também o dever de proteger a vulnerabilidade. Em geral, quem pede a eutanásia ou a retirada de um aparelho, por exemplo, são pessoas às quais o sentido da vida é a morte. É um sentido absolutamente legítimo, mas precisamos ter mecanismos capazes de separar a escolha autônoma de um processo de abandono, de desprezo, de falta de cuidado, de solidão. Na Holanda, onde a eutanásia é ativa e já reconhecida, uma pessoa que quer morrer será atendida por dois psiquiatras, a equipe médica que dá o laudo é diferente da que a está tratando, uma assistente social pesquisa se há interesses de herança envolvidos e/ou histórico de abandono familiar e o pedido precisa ser feito mais de uma vez em determinado período de tempo. Essa estrutura, ou perícia, tenta evitar outras motivações que não cuidar das pessoas ou do exercício do direito de morrer. O pai de Franca, por exemplo, está falando em nome do cuidado com o filho ou confundindo isso com seu cansaço? Sempre teremos uma dose de incerteza a respeito, faz parte da condição humana, mas talvez esses mecanismos normativos de controle possam ajudar na tomada de decisão.

O CENÁRIO DO ESPETÁCULO

Em Franca, assim como no caso de Terri, o pedido de desligamento de aparelhos ganhou publicidade porque familiares estão brigando entre si. Mas os casos que não envolvem dissenso raramente vêm à tona. Seriam paradigmáticos para enfrentarmos o debate público, porém não ganham publicidade; são resolvidos com a família e a equipe médica. Isso só piora o debate porque levanta variáveis que tiram o foco. Quando entra o cenário do espetáculo, as pessoas não aprofundam o argumento e vão para o periférico, que é dizer que os pais querem matar, que não querem mais cuidar. Rapidamente se dirigem a esse pai como assassino, como sujeito perverso, e a essa mãe como uma santa. Quem passa pela mesma situação fica com medo do espetáculo e de apresentar sua história, que permitiria um debate público civilizado.

DOCUMENTO REGISTRADO

Eu e meu marido temos, cada um, um documento autenticado que especifica como gostaríamos de morrer. Não resolveria um problema como o de Franca, mas talvez ajudasse no de Terri. Tenho um acordo mútuo com pessoas próximas de que o papel será usado. A pretensão é que documentos como esse, em casos de surpresa, possam ser usados como argumento público apenas para a ética privada. Num paralelo, a autorização no RG para doar órgãos não pegou porque muitos tinham medo da lei achando que recebiam um diagnóstico de morte encefálica só para retirada de órgãos. Isso gerou uma instabilidade política. A lei também veio de cima para baixo, as pessoas entendiam pouco o que era morte cerebral. Como aceitá-la se o coração continuava batendo? Mas não tenho a menor dúvida de que o documento que registrei será respeitado por toda a minha família. Vai se tornar um grande complicador para quem pretender incriminar aqueles que quiserem me ajudar. Não quero que ninguém diga que alguém me matou.

EUTANÁSIA E ABORTO

Alguém poderia comparar o dilema do casal de Franca com aquela situação em que um pai é contra o aborto desejado por uma mãe. Mas, na primeira situação, temos o garoto. Ele existe, é um terceiro corpo, uma terceira existência. Já o feto está dentro do corpo da mulher. Não são três, mas dois. Precisamos fazer uma escolha sobre quem é legítimo - e não tenho a menor dúvida de que essa pessoa é a mulher. Se considero que o pai tem o direito de deliberar pelo feto, estou alienando o corpo e a existência dela. Essa discussão muda quando a criança nasce. Ela tem um minuto de vida, já há uma terceira existência. Mas é raríssima a situação em que o pai quer e a mãe não. Em geral, os homens não querem esse bebê. Ela está sozinha. Ainda assim, a discussão sobre o aborto, em especial a dos anencéfalos, está bem mais adiantada que a da eutanásia, embora seja importante discutir sobre isso em esferas acadêmicas. Infelizmente, alguns preferem afirmar que sou da cultura da morte, uma assassina. Ao mesmo tempo que estamos tão avançados, temos uma preocupação muito grande com o acessório, com o tabu de falar sobre isso.