Título: `Não há clima para impeachment¿
Autor: Expedito Filho e Mariângela Galucci
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/09/2005, Nacional, p. A10

BRASÍLIA - O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, diz que não há clima político para o impeachment. E o motivo é simples: a população não deseja a destituição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Eu vivi muito o impeachment de Fernando Collor", lembra Jobim, que na época era deputado. "Havia um movimento popular. E eu não vejo esse movimento popular hoje." Para o presidente do STF, a crise representa uma oportunidade para mudanças. Nelson Jobim sugere o fim da reeleição, mecanismo que, nas suas palavras, "está dando problemas". Em troca, ele propõe a ampliação dos mandados dos governantes de quatro para cinco anos. Defende ainda alteração das regras eleitorais, com a proibição das superproduções dos programas televisivos e o fim dos chamados showmícios.

Instalado em amplo gabinete no terceiro andar do prédio principal do STF, Jobim, nesta entrevista ao Estado, revela que nunca em toda sua vida pública presenciou um escândalo com as proporções do valerioduto, produto da associação do PT com o empresário Marcos Valério Fernandes de Souza.

Assediado pelo PSDB e pelo PMDB, Jobim nega que esteja cogitando disputar a presidência da República.

O senhor vai se candidatar à Presidência da República em 2006? Já há dirigentes do PSDB e PMDB cogitando essa possibilidade?

Há uma regra constitucional que diz que é vedado ao juiz ter qualquer tipo de atividade político-partidária. Logo, se eu respondesse que sou ou não sou candidato, significaria que eu cogitei o assunto. E a regra diz que juiz não cogita dessas coisas. Eu não cogito porque o que é fundamental no processo democrático é a obediência às regras do jogo. Uma coisa é eu não cogitar. Outra coisa é os outros cogitarem. Eu não posso proibir que cogitem. Não tem nenhuma articulação. Pelo contrário.

Qual é a avaliação que o senhor faz da crise?

É uma crise relevante de um lado para botar na vista problemas que temos dentro do sistema eleitoral, das tradições eleitorais. Por outro lado, é uma crise que mostra mais uma vez o fortalecimento das estruturas institucionais. Uma coisa é a crise política e outra coisa é o tratamento que as instituições dão à crise. E essa crise está se encaminhando dentro da normalidade institucional. A estabilidade política era antes assegurada pelos militares. Agora as instituições políticas seguram a crise. E a crise está sendo metabolizada. Não vejo nenhuma crise institucional.

O senhor acha que estamos diante de um risco de impeachment do presidente Lula?

Eu vivi muito o impeachment de Fernando Collor. Eu estava no PMDB e fui indicado pela liderança do partido para relator da acusação na Câmara. Eu me lembro claramente daquele momento. Ele mostrou a maturidade do sistema. A crise era do presidente da República e não contaminou o governo, que continuou operando. Se conseguiu isolar isso. Mas tinha nitidamente naquele período um clamor popular para o impeachment ser admitido pela Câmara. Havia um movimento popular. E eu não vejo esse movimento popular hoje. Hoje a crise está centrada dentro do Parlamento, em parlamentares de determinados partidos. A crise não está dentro do governo.

Do ponto de vista político, as instituições saem arranhadas dessa crise?

Não. Hoje é uma crise tipicamente parlamentar, político-partidária. As instituições saem fortalecidas. E a crise ainda tem um ingrediente para o deslanchamento da reforma política necessária. Alguns dizem: "Esse Congresso não pode fazer a reforma porque é um Congresso contaminado." Quem é que vai fazer? Ele que tem de fazer. As mudanças são feitas para superar problemas. E o que mostra essa crise é que o modelo do sistema eleitoral que induz a um determinado tipo de conduta mostrou que está superado, que chegou no máximo da sua possibilidade de sobrevivência. Então tem de haver necessariamente reformas políticas.

Na hipótese de surgir algo que coloque em dúvida a honestidade do presidente Lula, o senhor acha que a sociedade está madura?

Em relação a isso, há uma coisa que eu aprendi com o dr. Ulysses Guimarães. Ele dizia o seguinte: o tempo não perdoa o que se faz sem ele. Ou seja, há que administrar o tempo. E não falar em hipóteses. A experiência mostra que fatos políticos têm uma volatilidade brutal. Tanto que Ulysses dizia que a coisa mais antiga do mundo em política era o jornal de ontem.

Na época em que o senhor estava no Congresso Nacional ouvia-se falar em mensalão?

Não. Isso só apareceu agora. Não existia essa conversa. O que se falava na época era o problema de acordos em relação à liberação de verbas orçamentárias. Principalmente considerando que um grande número desses parlamentares são regionais, eleitos para representar regiões do Estado. E essas regiões tinham reivindicações, como construção de pontes e estradas. Eles liberavam verba e havia negociação nesse sentido. O que houve na época e foi denunciado eram as emendas parlamentares para organizações não-governamentais. No final se identificou que o dinheiro circulava e acabava na mão do parlamentar. Isso provocou até cassações.

O inquérito do mensalão tramita no STF em segredo de Justiça. O senhor acha necessário isso?

É da regra. Inquéritos não significam culpas. No sistema democrático, a presunção é da inocência. Só os sistemas autoritários partiam da presunção da culpa. O sujeito tinha a obrigação de provar a inocência. Aqui a regra é o contrário: o acusador tem de provar. Mas quando vem a denúncia abre tudo.

Por que o senhor acha que o mensalão passou a existir?

Em primeiro lugar, você está querendo que eu diga que o mensalão existe. Vamos aos fatos. Havia um caixa paralelo, com dinheiro irregular operado pelo empresário Marcos Valério de Souza beneficiando muitos parlamentares. Por que esse fenômeno aconteceu?

A partir de 90, foram crescendo progressivamente os custos de campanha. Quem discutia isso era o Mário Covas, ele ofereceu uma proposta para proibir, por exemplo, que os programas de televisão fossem produzidos. São grandes produções de técnicos, publicitários.

E isso tudo começou a onerar. O Mário Covas tentou fazer isso e não conseguiu aprovar. Inclusive o próprio Partido dos Trabalhadores na época não quis participar desse projeto porque pretendia utilizar na campanha eleitoral imagens colhidas durante a chamada caravana da cidadania. O que ocorreu? Houve um aumento brutal da despesa. Quem conhece campanha eleitoral como eu conhecia à época sabe que tem uma tendência do aumento da despesas. Se você tem uma pressão pelo lado da despesa você tem uma pressão pelo lado da receita. Hoje, por exemplo, se você reduz o arco de fundos de campanha e não mexe na despesa você está empurrando para a ilegalidade eleitoral. Porque havendo despesa eles vão encontrar um jeito de pagar. Você faz com que o sujeito vá buscar forma de financiamento fora.

Como mudar isso?

Eu vejo com simpatia essas regras de proibição de determinados hábitos de campanha. Proibir a produção de programa. Proibir showmício. Qual é a razão do showmício? É que o comício antigo desempenha dupla função: dar ânimo à militância e fazer a população conhecer o candidato. Porque antes de a televisão entrar nisso o candidato só era conhecido pelo ouvido, pelo rádio. Ou por notícia de jornal. Era necessário o candidato sair pelo País todo para mostrar a cara, para ser conhecido, para as pessoas tocarem. A televisão apareceu e essa finalidade desapareceu. Mantiveram a figura do comício para ser movimento de militância. Mas o que aconteceu? Os comícios passaram a ser aparelho de candidatos, cada candidato levava a sua claque. Chegavam ônibus, davam alimentação. Para assegurar a permanência dessas pessoas e eventualmente atrair outros que não fossem dessa estrutura passaram a contratar artistas. Os discursos iniciais eram feitos pelos candidatos menos expressivos. Depois vinha o candidato interessante e encerrava com o show. Era o show que mantinha as pessoas ali.

Um projeto que está no Congresso proíbe os showmícios e também a distribuição de brindes. Como fiscalizar isso?

Vai ter candidato que vai fazer e candidato que não vai fazer. Quem fiscaliza é o candidato da oposição. É todo um jogo de denúncias. Você usa os próprios candidatos como instrumento de fiscalização. Mas tem de lembrar que atrás disso tudo está um mercado. Mercado de impressoras, gráficas, produtoras de televisão. A experiência mostra que quanto mais isso vai surgindo mais o mercado se amplia e mais ele inventa necessidade.

O senhor é a favor do sistema público de financiamento de campanha eleitoral?

Eu sou favorável. Mas o problema do sistema público só é compatível com o sistema de listas porque a campanha não é individual. Não é campanha feita através do candidato. É feita pelo partido através de listas. O universo de fiscalização é menor e mais eficaz. E cada vez mais está se caminhando para a moeda eletrônica. Está se procurando fugir da moeda manual.

Que outra regra política está exigindo mudanças?

O que talvez seja conveniente estudar é acabar com a reeleição. Mas acabar com a reeleição teria um ônus. Aumentar o mandato do presidente. Aí vai surgir aquela discussão de novo. Falam que o presidente José Sarney brigou pelos cinco anos. Não. O presidente Sarney concedeu um ano. O presidente tinha um mandato de seis anos. O PMDB queria quatro anos porque sabia que a Constituinte terminava em 88 e você poderia ter um candidato em cima da Constituinte. Ao concordar com os 5 anos, a estrutura da Câmara ficou desenhada para 4 anos e do Senado para 8. Aí deu a confusão.

Por que o senhor acha que deveria acabar com a reeleição?

Está dando problemas. Não na eleição nacional, mas na de prefeito e governador. O sujeito começa a trabalhar só para a reeleição. Inclusive alguns governadores falaram comigo que a experiência da reeleição não é boa porque você entra com todo o gás no primeiro período. Mas no segundo não. Então poderia ficar cinco anos. Mas para ficar cinco anos teria de ver como faz com a Câmara e o Senado. Mas isso se resolveria com o parlamentarismo. Acabava com essa história.

O senhor continua achando que é o melhor sistema?

Sim, mas em contexto global. As crises políticas quando atingem o Executivo no parlamentarismo se resolvem com uma rapidez incrível. Pula o problema.

O senhor acha que o Ministério Público comete exageros?

O que tivemos em um determinado momento foi alguns agentes do Ministério Público que se utilizaram de seus poderes para uma visibilidade. Mas a regra não é essa. Eu discordo de alguém que vira arauto informativo sobre determinadas situações que conhece pelo exercício de uma função. Que alguém use isso para ser um promíscuo colaborador da imprensa. Houve um conflito agora em que um cidadão estava ouvindo um depoimento e depois descia correndo para dizer o que estava sendo dito.

Em relação aos mecanismos de investigação, o governo e setores do PT questionaram o instrumento da delação premiada. O que o senhor acha do uso dessa lei?

A delação premiada se destina a (debelar) uma organização criminosa da qual o sujeito participava. Ele tem condições de dar informações que possam levar a debelar a organização criminosa. Então o instrumento da delação premiada fez uma opção: é mais importante para a sociedade (ir) apenas contra alguém que foi flagrado no ilícito ou negociar a pena com ele para conseguir derrubar a organização criminosa. A opção que a legislação fez na lavagem de dinheiro foi essa. Viabiliza a negociação. Tem uma estrutura de negociação. Ou tem a redução da pena e chega até a não aplicação da pena. A delação premiada foi um instrumento altamente eficaz no combate à máfia.