Título: Destruição em nome da segurança
Autor: Cleide Silva
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/09/2005, Economia & Negócios, p. B6

Carroceria mais mole, feita com material flexível para absorver batidas e bolsas infláveis que transformam o interior do carro em uma bolha para proteger passageiros são alguns dos projetos desenvolvidos pela indústria automobilística para amenizar acidentes que, na maioria dos casos, são provocados por imprudência. Investimentos para tornar o carro menos perigoso são altos e contribuíram para significativa redução no índice de fatalidades no trânsito. Novas tecnologias são aplicadas na criação de sistemas que, em breve, vão avisar até mesmo quando o condutor cochila ou está bêbado.

Na quarta-feira, na fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, um Gol geração 4, que começou a ser vendido este mês, foi arremessado contra uma parede de cimento a 50 quilômetros por hora. Boa parcela da parte frontal foi destruída. O passageiro, um boneco igual a um adulto, chocou a testa contra o painel, mas usava cinto de segurança e o impacto foi amenizado.

Chamada no meio automobilístico de `crash test¿, essa cena se repete muitas vezes durante o ano. Pelo menos 150 carros novinhos são destruídos na fábrica da Volks. A General Motors destrói em média 200 veículos ao ano no seu laboratório em Indaiatuba (SP), parte deles em testes fornecidos para outras filiais do grupo. As duas montadoras são as únicas a fazer no País esses testes. As demais usam centros das matrizes.

"O grande diferencial dos carros hoje é a evolução da estrutura das chapas de aço, que se deformam mais para garantir a integridade do espaço onde está as pessoas", diz Marcelo Bertocchi, gerente de Engenharia de Segurança da Volks.

A introdução de equipamentos como cinto de segurança, air bag, freios ABS e sistemas eletrônicos de estabilidade a partir dos anos 70 reduziram as mortes no trânsito, mas os números ainda são alarmantes. Segundo as montadoras, 30 mil pessoas morreram em acidentes no País em 2004. No mundo todo foram mais de um milhão.

Na Europa, uma lei de proteção ao pedestre que entrará em vigor em 1º de outubro obriga empresas a criarem carros com material mais leve e deformável. "Novos projetos devem evitar, por exemplo, design pontiagudos, como os dos carros esportivos", diz Bertocchi. Aços mais leves, alumínio e alguns tipos de plásticos conseguem absorver e amortizar impactos para quem está dentro e fora do automóvel.

Ao todo, a Volks realiza 450 testes de impacto ao ano, dos quais 300 são de partes do carro, feitos em um trenó que faz as vezes da carroceria. O Gol destruído passava por um teste para ser homologado pelo governo da Argentina, para onde o modelo será exportado.

Quando o produto é uma novidade, o número de testes é maior. Antes do lançamento, a Volks destruiu 100 Fox. As primeiras experiências são feitas com protótipos, modelos praticamente produzidos de forma manual e que custam até 10 vezes mais que o veículo de série. Parte do desenvolvimento é feita pelo computador, "mas nenhuma simulação virtual reproduz o resultado do teste de impacto", diz Bertocchi. Todas as fases são microfilmadas por câmeras que permitem avaliação minuciosa de cada movimento do carro e dos passageiros. Em 2004, a Volks gastou US$ 1 milhão na compra de 5 filmadoras. "Toda mudança que ocorre no veículo, mesmo a substituição de um parafuso exige novo teste", explica Nelton Monteiro, gerente do Campo de Provas da Ford. A montadora realiza no País testes para verificação de vazamento de combustíveis, deslocamento da coluna de direção e calibração de air bag. Demais avaliações são feitas nos Estados Unidos.

A Fiat recorre à matriz para exames de seus produtos. Para testar o Idea brasileiro, lançado semana passada, foram destruídos 40 modelos. A Fiat realiza cerca de 560 testes na Itália para modelos das empresas do grupo, inclusive a Ferrari.

"Os carros destruídos são guardados por cinco anos para análises posteriores caso ocorra algum problema", informa Marco Antônio Saltini, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA). Volks e GM têm o que chamam de cemitérios de carros destruídos. No pátio da Volks há 200 deles, alguns de modelos ainda inéditos.

BONECOS

Além de usado para certificar a qualidade do veículo, o `crash test¿ simula efeitos do impacto no ser humano e ajuda no desenvolvimento de sistemas de segurança. Bonecos chamados de dummies (bobões, em inglês) substituem o ser humano. Eles têm estaturas e pesos iguais aos de pessoas de várias idades.

Cada dummy custa US$ 100 mil. Os bonecos têm mais de 100 sensores capazes de simular o que ocorre com a pessoa em um acidente. "Realizamos testes em que o carro bate contra uma barreira estática, contra outro carro e em diferentes ângulos", afirma Mauro Gioria, gerente dos laboratórios do Campo de Provas da GM.

A empresa, que recentemente investiu US$ 20 milhões na ampliação do centro de testes, tem uma família com 17 bonecos, todos vestidos com roupas normais, doadas pelos funcionários. Já os 30 bonecos da Volks usam uniforme da empresa.

Nos anos 50, os testes eram feitos com cadáveres. Hoje, os dummies estão na terceira geração. "Conseguimos medir lesões na perna, joelho, tíbia, pélvis, tórax, costela, pescoço e cabeça", informa Gioria. Mas a indústria trabalha na quarta geração de bonecos, que está em fase de experiências. Uma das versões, chamada de Thor, tem biofidelidade melhor, com articulações muito próximas do ser humano. Seu preço, por enquanto, é de US$ 1 milhão.