Título: Por que me ufano do meu país
Autor: João Silvério Trevisan
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/09/2005, Espaço Aberto, p. A2

Desde meus tempos de política estudantil, militando na Ação Popular (AP) ou convivendo com grupos clandestinos, aprendi dois dados importantes sobre as esquerdas brasileiras. O primeiro é que nós, supostos revolucionários, tínhamos convicção de que nossos fins justificavam os meios. O segundo é que se visava a revolucionar o outro como maneira de não mudar nada no agente revolucionário. Minha posterior vivência nos movimentos feminista e homossexual confirmou esses dados, mais atuais do que nunca na atual crise petista. O PT significou o auge das qualidades de nossas esquerdas. E dos seus defeitos também. Sua marca registrada foi a dedicação à tarefa transformadora, com uma modernização até então inédita na esquerda brasileira. Em contraposição, apropriou-se da verdade política, como se não houvesse inteligência nem salvação fora do PT. A arrogância tornou-se, muitas vezes, um traço comum em todas as suas correntes. Tendeu-se a uma seita de eleitos, com dogmas, profetas e um Messias: Lula. A presunção de modernidade levou o petismo a cooptar os movimentos sociais, dentro do sonho bolchevique de partido único que atualiza os anseios populares. Assim, núcleos de luta social não partidária perderam autonomia e se tornaram reféns do PT. Mais: com o PT no poder, a confusão entre governo e partido inaugurou um novo tipo de peleguismo. Antigos militantes, agora empregados das gestões petistas, passaram a defender o partido-patrão para garantir seu salário.

Mas o pior talvez tenha sido o comportamento de muitos intelectuais, tornados correias de transmissão das teses do "comitê central" do PT. Movidos por uma vaidade que os impedia de admitir equívocos ideológicos, enterraram o modelo do intelectual independente e provocador, preferindo a subserviência. No cômputo geral dessa divisão do butim político dentro do PT, perpetuou-se a doença nacional de tirar vantagem de tudo. Mudaram as moscas, mas os doces continuaram os mesmos. Uma vez no poder federal, as promessas petistas se diluíram com seus projetos pífios de transformação e suas alianças espúrias. Não surpreende, portanto, afundar-se na lama o partido que apregoava ser guardião da ética política. Tentar manter Lula como um mito intocável é manter a ilusão da verdade revelada. Não é justo nem para o presidente nem para o Brasil que ele carregue nos ombros o peso dos nossos sonhos sebastianistas. Nossas esperanças políticas não precisam de Messias.

Talvez seja útil lembrar aquele grupo de jovens intelectuais que instaurou um núcleo de idéias inovadoras através do modernismo de 22, e desembocou no movimento antropofágico. Ali se realizou um raio X do metabolismo nacional para pesar o que havia de realidade no estômago da Nação. Encontrou-se muito pouco: uma fome tão profunda que só nos restava devorar o que não era nosso para daí extrair a nossa essência. Nesse estágio da fome como marco zero, precisou-se criar Macunaíma, herói nacional sem nenhum caráter, para garantir a sobrevivência. Foi com esses parcos elementos que se constituiu um projeto nacional. Como dizia Oswald de Andrade: bárbaro e nosso. Por mais que doesse, a falta de sentido resumia nosso sentido. E quem propunha essa busca da verdade nacional? Não era nenhum Messias com seus apóstolos. Ao contrário, tratava-se de um mimado filho da burguesia de São Paulo e de um mulato andando na contramão da sua homossexualidade reprimida. Imbuídos ambos de consciência crítica privilegiada, eles se miraram no espelho da devoração do bispo Sardinha. Ante a ausência de um rosto, adotaram a máscara e fizeram o carnaval.

Quase um século após o modernismo brasileiro, o espírito macunaímico já cumpriu sua função histórica. Retomo aqui uma idéia que propus em 1994, no meu romance Ana em Veneza: é hora de aposentar o herói nacional sem nenhum caráter. Seu domínio desembocou no cinismo. E isso vemos na atual crise do PT, que desmascarou a idéia da pureza política da esquerda. Não dá mais para fazer de conta. Na perplexidade dos últimos anos, já soa demasiada a omissão dos nossos pensadores políticos. Está na hora de encarar equívocos, a partir da necessária lavação de roupa suja, para tentar um importante salto histórico das esquerdas. Este parece ser o grande momento para a organizar um encontro nacional de intelectuais que, acima de sectarismos partidários, discuta as pretensões revolucionárias do nosso passado e repense o futuro.

Aliás, o processo podia se iniciar com a projeção do filme Quanto Vale ou É por Quilo?, de Sérgio Bianchi. Serviria como um espelho cruel para deflagrar o debate sobre o fiasco das nossas tentativas de transformar o Brasil. Portanto, urge uma ampla e irrestrita revisão que comece nos mitos fundadores deste país e chegue até o papel das nossas esquerdas, que são a outra face da elite, herdeira dos seus defeitos estruturais, inclusive o autoritarismo. Não se visa enterrar o petismo, conforme o temor de muita gente ideologicamente paranóica. Ao contrário, aí está mais uma função do PT: suas mazelas servem para o País inteiro se repensar. Bem longe dos seus manuais de correção política, os paradoxos do PT podem nos levar a um conhecimento mais exato do País.

Complexo de Poliana? Não. Um país cuja história recente foi capaz de produzir um partido com a projeção renovadora do PT é o mesmo com capacidade de gerar o espantoso esquema de corrupção petista. E de desvendá-lo. Hoje, estamos ante um raro momento da verdade nacional que, por ser legítima, contém muito mais paradoxos do que gostaríamos. Uma verdade nojenta, mas nossa, que permite conhecer melhor nossos abismos. E a face do Brasil real.

Goste-se ou não, é no fundo do poço que começaremos a nos orgulhar deste país.