Título: A Câmara pode se redimir
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/09/2005, Notas e Informações, p. A3

Mesmo na remota hipótese de que não se consiga provar cabalmente que o concessionário de um restaurante da Câmara dos Deputados pagou propina, em 2003, ao então primeiro-secretário e atual presidente da Casa, Severino Cavalcanti, o documento divulgado terça-feira no site da revista Veja desfez o último fiapo de dúvida que ainda poderia restar sobre o imperativo de removê-lo da cadeira de deputado (e, por extensão, do comando da principal instituição parlamentar do País). Assinado por Severino em abril de 2002 e dado como autêntico por um perito, o papel - com o timbre da Câmara - é o quanto basta para expelir do Congresso uma de suas mais deploráveis figuras, o "rei do baixo clero" alçado ao status de terceiro hierarca da República pela incompetência petista e o revanchismo irresponsável de parcela da oposição. Nas suas parcas cinco linhas, o texto é um atestado definitivo da ética severina - e de seu cúmplice, no caso, o deputado também pernambucano Gonzaga Patriota. (A parceria entre o pepista ultraconservador e o filiado ao PSB vale por um tomo sobre a coerência dos políticos brasileiros típicos.) Instruído pelo Patriota, Severino deu a Sebastião Augusto Buani, o restaurateur do Fiorella, no anexo IV da Câmara, o equivalente a um contrato de gaveta, prorrogando-lhe a concessão até janeiro de 2005. Foi um conto-do-vigário: a prorrogação tem o mesmo valor legal que uma cédula de 3 reais. Buani teria pago pelo ilícito R$ 40 mil - metade para Severino, metade para o Patriota. Ainda que nada tivesse recebido pelo falso favor, ao assinar o que não poderia ter assinado, Severino violou uma norma da Câmara e a Lei de Licitações.

Na segunda-feira, ele completou a afronta ao decoro parlamentar com mais uma assinatura - dessa vez na nota oficial em que negou que existisse o documento com a sua firma, tornado público horas depois do seu desembarque em Nova York para representar a Câmara em um evento na sede da ONU. (E dias depois de ter sido agraciado com a comenda da Ordem do Rio Branco, por serviços prestados ao País!) A demonstração das razões irrefutáveis por que Severino deve ser expelido do organismo parlamentar nacional - elegendo a Câmara um novo presidente, passados 30 dias do desejável desenlace - é apenas o ponto de partida de uma jornada incerta. Em primeiro lugar, a Casa não poderá aceitar que ele renuncie ao cargo, mas conserve o mandato: ou a renúncia por inteiro, ou a cassação, ao cabo do devido processo regimental.

É bem possível que ele tente recorrer à chantagem: decerto o que o veterano e ladino deputado não sabe sobre os podres de seus pares não vale a pena saber. Mas os cardeais da Câmara não haverão de ignorar que, se se deixarem extorquir, estarão assinando o seu atestado de óbito político. Em segundo lugar, os líderes partidários que irão encaminhar a questão ao Conselho de Ética têm de levar em conta, além da óbvia necessidade, a oportunidade. Hoje como hoje, nada garante que a cassação contaria em plenário com os 257 votos (secretos) exigidos para se consumar. A maioria moralizadora precisa ser construída sobre alicerces seguros. Isso, numa corporação legislativa em que, por força da crise da corrupção que se abateu sobre ela - e de um governo que ali quer confiná-la -, a situação, diria Severino, é de vaca não conhecer bezerro.

Terceiro, nos cálculos de conveniência dos políticos, a cassação de um presidente da Câmara e a sua sucessão representam lances de um mesmo jogo - cujas regras informais os jogadores em campo deixaram de saber quais são, dada a desarticulação geral que reina na Casa (do que a eleição de Severino foi conseqüência e fator de agravamento). A oposição, única força ainda razoavelmente organizada na Câmara, pode aspirar à presidência, mas parece não ter os votos para tal, muito menos a autoridade, dada a sua imperdoável contribuição para o triunfo severino na fatídica madrugada de 15 de fevereiro. O PT é uma nau à deriva. Nas bancadas mensalônicas da base aliada, a prioridade é salvar a própria pele - e por aí vai. Apesar desses formidáveis obstáculos, porém, essa é a hora de a Câmara se redimir.

Cassem-se tantos severinos quantos tenham, comprovadamente, espezinhado a ética parlamentar e busque-se um consenso para a eleição de um presidente comprometido acima de tudo com a dignidade do Legislativo.