Título: 'Minha irmã, querem acabar com a gente'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/09/2005, Internacional, p. A11

NEW ORLEANS - "Cherol, eu acabo de fugir de um campo de concentração e preciso de ajuda para contatar alguém de minha família que venha me buscar", pediu Geraldine Levy, em prantos, falando com a sua irmã, Cherol Wright, em Michigan, num celular emprestado, sábado. Uma senhora negra, de meia-idade, Geraldine deixara pouco antes , a pé, um galpão do aeroporto de New Orleans, onde havia chegado com outros refugiados depois de passar quatro dias de tormentos no centro de convenções da cidade, à espera de socorro. Levava apenas uma garrafa d' água e a carteira. "Minha irmã, eles querem acabar com a gente, inundaram a cidade de propósito e depois nos trataram como não se trata nem animais", continuou Geraldine. "Agora querem me dar uma passagem de avião de graça e me levar para um outro campo de concentração em San Antonio, no Texas. Eles fizeram a mesma coisa com os japoneses aqui na 2.ª Guerra. Mas eu não vou, Cherol. Tenho dinheiro, tenho cartão de crédito, não preciso de ajuda, queria alugar um carro para buscar o resto da família que ficou no aeroporto, mas está tudo fechado." New Orleans só será reaberta, de forma limitada, hoje, à população para permitir que os moradores dos subúrbios de classe média alta retornem para inspecionar os danos que Katrina causou a suas casas.

O presidente George W. Bush precisará fazer muito mais do que a segunda-viagem a New Orleans, hoje, para tentar conter a revolta nacional provocada pela vergonhosa operação de resposta de seu governo à devastação produzida pelo furacão Katrina. A revolta maior é entre os negros, na maioria pobres, que são mais de um terço da população da cidade e foram os que mais sofreram com o furacão, a inundação e, depois, a inepta operação de socorro das vítimas, Bush terá de reverter a impressão de que a administração não apenas abandonou os pobres para salvar os ricos numa hora de emergência nacional - uma constatação feita aaté por republicanos. Muito mais grave do que isso, ele terá que desfazer a teoria conspiratória que grassa entre os refugiados de que o governo se omitiu de propósito.

A acusação, reforçada pelo sofrimento e pela humilhação, foi feita no fim de semana até pelo colunista conservador David Brooks, do New York Times. A idéia de que o mais poderoso governo do mundo desconheceu a primeira regra de qualquer crise, que é proteger os mais vulneráveis, transformou-se em convicção entre as vítimas. Elas acham que não apenas foram ignoradas por quem deveria tê-las protegido, mas que as autoridades conspiraram para produzir exatamente o desfecho que se viu.

"Quando a governadora (Kathleen Blanco) deu a ordem de retirada da cidade, no sábado, e Bush disse que a ajuda estava a caminho, eles não estavam pensando em nós, mas nos residentes dos subúrbios", disse ao Estado Larry Crawford, de 34 anos, supervisor de uma clínica para doentes mentais, enquanto aguardava para deixar a cidade num dos últimos ônibus que saiu do centro de convenções, no fim da tarde do sábado. "Se era uma emergência, eles poderiam ter mandado ônibus para retirar as pessoas, negros e brancos, o que até ajudaria a diminuir o congestionamento nas estradas", disse. "Mas, para os negros como eu, não havia emergência, e sim um plano. E parte do plano foi abrir comportas (do sistema de controle de enchentes) depois do furacão e inundar os bairros pobres para aliviar a pressão das águas nos bairros ricos. Depois, nos acusaram de roubar. Sim, eu roubei comida porque estava com fome", desafabou Crawford.

"Esse governo é capaz de mandar tropas , tanques, comida e água para o outro lado do mundo para lutar no Iraque, que aliás não fez nada contra nós, mas não tem soldados para acudir gente com sede e fome no próprio país. Que conclusão eu posso tirar?"

A causa conhecida da inundação foi o rompimento, em dois pontos, do sistema de mais de 500 quilômetros de diques e barragens que protege a cidade, situada quase toda abaixo no nivel das águas do rio Mississipi e do lago Pontchartrain, que a envolvem em três lados. Mas mesmo essa explicação física sobre a origem da catástrofe deixará Bush e o Congresso republicano numa posição politicamente difícil em New Orleans e no restante do país. Embora o presidente tenha dito que "ninguém poderia ter antecipado" a ruptura dos diques, essa possibilidade passou a preocupar a autoridades locais depois que as verbas federais destinadas a modernizar o sistema foram desviadas para a guerra do Iraque e outras prioridades. Em declarações publicadas no ano passado pelo principal jornal de New Orleans, o Times-Picayune, Walter Maestri, o chefe dos serviços de emergência de um dos distritos da cidade, disse: "Parece que o dinheiro foi realocado no orçamento do presidente para (financiar) segurança interna e a guerra no Iraque, e acho que esse é o preço que pagamos."