Título: 'De repente você vê que não é nada'
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/09/2005, Internacional, p. A12

RIO - Alívio, emoção, festa de família e muita reclamação sobre a ajuda oficial para o retorno ao Brasil. Depois de escaparem da fúria do Katrina em New Orleans, o economista Jozé Cândido Sampaio de Lacerda Neto, de 26 anos, e o casal Angela e Antonio Medalha chegaram ontem ao País parecendo não acreditar muito no que aconteceu. "Desde quarta-feira foi muito ruim. Estávamos quase sem água e com racionamento de comida. Na quinta-feira, já estava dormindo na rua e na sexta estava num campo horroroso, sem perspectiva de conseguir sair. Os três dias finais foram terríveis", lembrou Lacerda Neto, que foi recebido no aeroporto pela mulher Letícia de Lalôr e a filha de 7 meses.

O casal Medalha tinha programado sair de Nova Orleans no dia 29, justamente quando o furacão Katrina passou pela cidade. "A gente estava vendo um telão e a imagem saiu do ar. Foi quando o furacão passou. Eu tive curiosidade e queria ver, mas o segurança não deixava. Só vi o furacão por 20 segundos", conta Antonio.

Após a tempestade, ele conta que a direção do Hotel Sheraton, onde estavam hospedados em férias, pediu para os hóspedes subirem, pegar poucas malas, encher a banheira (como reserva de água) e descer novamente. Foram 48 horas de espera até poderem subir aos quartos e pegar as coisas. As primeiras refeições eram completas, servidas com talheres. Depois começou a haver falta de suprimentos. Nesse tempo, o casal conta que viu hóspedes roubarem água e pessoas de outros hotéis pegar comida.

"De repente você vê que não é nada, pode sumir", diz Antonio, engenheiro aposentado de 58 anos. Ele e Angela, de 52, só conseguiram sair de Nova Orleans do dia 31. Pegaram um ônibus em péssimas condições, fornecido pelo Sheraton, e viajaram por duas horas até Baton Rouge, capital do Estado da Louisiana. Na viagem, viram muitos policiais armados, lojas com janelas quebradas, gente correndo, ambulâncias. "Não vi corpos pela cidade. Só havia um estado de tensão", diz Antonio. Eles pegaram outro ônibus para Dallas, onde ficaram dois dias até voltar ao Brasil.

O vôo do economista Lacerda Neto aterrisou no Rio com quase duas horas de atraso, aumentando mais a ansiedade da mulher Letícia, dos pais e da irmã dele. A filha do casal, Luana, dormiu nos braços da mãe e não acordou nem na hora do abraço emocionado da chegada. Lacerda Neto participava de um curso em Chicago e, movido pela paixão pelo jazz, decidiu passar o fim-de-semana em New Orleans.

Letícia reclamou do desempenho das autoridades brasileiras. "Eu fiz o papel do Itamaraty", declarou. Segundo ela, em todos os contatos feitos com a Embaixada do Brasil em Houston era ela quem dava informações sobre o marido, quando deveria ser o contrário. "Eu fiquei muito chateada. Quando ele chegou a Alexandria, eles ligaram e eu disse: 'Agora que ele conseguiu sair de lá sozinho, ele vem sozinho para o Brasil'." (Ler resposta do Itamaraty ao lado.)

O economista relatou que no campo onde estava havia cerca de 5 mil pessoas. "A gente juntou um grupo de turistas e começou a fazer pressão. Mas, víamos crianças, recém-nascidos e senhores de idade em situação muito pior, que não estavam tendo atendimento."