Título: Morrer na véspera
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/09/2005, Nacional, p. A6

Por inépcia, Lula e Severino deram cabo de seus mandatos antes do prazo regulamentar Assim como o presidente da República, o presidente da Câmara dos Deputados pôs fim a seu mandato antes do prazo regulamentar. Por razões e caminhos diversos, Luiz Inácio da Silva e Severino Cavalcanti arrumaram um problema institucional que as forças políticas terão de administrar politicamente - o efeito de suas autoridades feridas - durante o próximo ano e meio, pois não parece haver energia disponível para soluções de natureza jurídica.

Por ora, o mais provável é que permaneçam onde estão, cumprindo o tempo que lhes resta, mas na condição - guardadas as proporções - de quase sombras da representação a um delegada pela maioria do eleitorado brasileiro em outubro de 2002 e a outro outorgada por surpreendentes 300 votos da Câmara em fevereiro de 2005.

Lula e Severino assemelham-se na superfície; não há termos de comparação entre as respectivas trajetórias, histórias, inserção popular e importância social, bem como são diversos os processos que os levaram ao topo. Severino chegou lá por acidente; Lula por ter sido persistente e construído ao longo de anos um projeto de identificação com as boas causas.

A despeito de todas as diferenças, no entanto, ambos foram, na reta final, produtos de um sentimento de negação a uma determinada realidade.

Em 2002, o eleitorado escolheu o PT como representação do repúdio a um governo que simplesmente cansou o País depois de oito anos no poder.

Antes de eleger Lula como o predileto para dizer não a mais quatro ou oito anos de PSDB, em 2002 o eleitor tentou duas outras opções: Roseana Sarney e Ciro Gomes. Juntem-se a isso as três derrotas presidenciais anteriores do PT e veremos que a escolha não foi fruto de convicções amadurecidas pelo acurado e longo exame dos atributos do candidato para governar.

Mesmo assim expressou um desejo; de renegar o conhecido e apostar no não sabido, mas foi uma vontade claramente manifesta.

No caso de Severino, deu-se a junção da incompetência governamental para agregar e organizar politicamente os aliados - mantidos relativamente fiéis até então na base da cooptação fisiológica - com a irresponsabilidade institucional da oposição, e obteve-se daí um produto anômalo, resultado de um movimento de negação ao candidato apoiado pelo governo e da oportunidade de imposição de uma derrota monumental ao Palácio do Planalto.

O PT poderia ter acertado, não fosse a excessiva auto-referência e a transposição da lógica do aparelho para a máquina da administração pública.

Já Severino não tinha a menor possibilidade de dar certo, estava fadado a representar uma derrota coletiva de uma decisão afobada e impensada do Parlamento, cuja experiência política de seus integrantes torna injustificável uma tomada de posição fundada em suposições opostas aos dados da realidade.

O eleitorado de um modo geral tem essa prerrogativa, dada a pluralidade da população, a própria dinâmica de uma sociedade de massas, em boa medida suscetível às seduções do marketing, e da baixa "escolaridade" no que tange à educação política.

Em relação a parlamentares é impossível conferir a mesma franquia sem lhes imputar a correspondente cobrança do ônus por eles mesmos contratado. Em tese, portanto, deveriam agora ser instados a agüentar o fardo até o fim sem o direito de pedir a Severino Cavalcanti que, por favor, saia de cena para não desmoralizar ainda mais a instituição legislativa.

Deveriam ter pensado isso naquela madrugada de fevereiro quando resolveram brincar com fogo e ainda justificar o feito, argumentando que, agora sim, a Câmara teria a necessária independência para atuar ao arrepio da influência do Executivo. Uma fantasia, como se viu logo na primeira entrevista, em que o novo presidente da Casa não imprimia às idéias e às palavras uma relação de causa e efeito.

Logo depois, deixaram passar incólumes ações como o uso do cargo para cobrança de cargos a apaniguados no Poder Executivo e proteção a aliados em vias de punição. O presidente do PP, deputado Pedro Corrêa - agora de volta ao banco dos réus - foi beneficiário de uma ação de arquivamento de processo interno por indicação da CPI dos Combustíveis. Na seara da operação abafa Severino é reincidente e jamais escondeu isso. Lidou com o assunto como se fosse prerrogativa do cargo.

De certa forma, a Câmara adotou o mesmo critério ao calar e aceitar. Tal histórico não lhe daria, em tese, a legitimidade necessária para agora reivindicar o afastamento de Severino diante das acusações - ainda em fase de confirmação - de corrupção e da defesa explícita de punições brandas aos usuários confessos de dinheiro "não contabilizado".

Mas a ausência de autoridade moral é apenas teórica, pode ser recuperada - de modo a não se tornar agora instrumento de defesa de toda e qualquer atitude de Severino - mediante uma explicação autocrítica do Parlamento à sociedade.

Exatamente o que a oposição cobra do presidente Lula em relação ao escândalo envolvendo os seus e que, até por uma questão de coerência, não poderá se recusar a fazer.