Título: Para continuarmos no Primeiro Mundo
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/09/2005, Espaço Aberto, p. A2

É raro que se passe uma semana sem que surja alguma notícia sobre descobertas da ciência a respeito do valor medicinal ou alimentício desta ou daquela planta, da utilidade comercial de um novo material, da importância da manutenção de um ecossistema para a qualidade de vida. Uma riqueza tão grande que leva a diretora do Jardim Botânico de Brasília, Anajúlia Heringer Salles, a repetir que "em matéria de biodiversidade o Primeiro Mundo é aqui". Mas para continuarmos nesse Primeiro Mundo muito nos falta fazer, seja para conservar biomas, seja para efetivar o conhecimento científico pleno dessa biodiversidade. Por isso, foi muito importante o workshop realizado há poucos dias em Salvador (BA) pelo Ministério do Meio Ambiente, no qual mais de cem cientistas, representantes de governos e de ONGs discutiram propostas concretas para implementar a Política Nacional de Biodiversidade, que teve seus princípios e diretrizes definidos por decreto (4.339/02) e que deverá ser apresentada na próxima reunião das partes da Convenção sobre a Diversidade Biológica, em março de 2006, em Curitiba.

A reunião na capital baiana evidenciou que há muito a fazer em várias áreas, entre elas na de instrumentos econômicos e tecnológicos para a conservação da biodiversidade, na recuperação de ecossistemas degradados, nas pesquisas e na definição de regras para acesso a recursos genéticos e repartição dos benefícios com as comunidades que detêm conhecimentos, entre outros. Há deficiência de propostas em relação aos ecossistemas do Centro-Oeste, do Pantanal, dos Campos Sulinos e das águas continentais. Da mesma forma, na construção de indicadores que permitam avaliar problemas e avanços.

Foram muitas - centenas - e interessantes as propostas ali aprovadas. A começar pelas de alcance mais amplo - desde a que pede a retirada do Congresso Nacional do projeto de lei do governo para concessão de 130 mil quilômetros quadrados de florestas públicas na Amazônia (para que a ciência e a sociedade possam discuti-lo melhor) até a que propõe a ampliação de unidades de conservação em todos os biomas; da que propõe integrar a política de biodiversidade com a de reforma agrária à que sugere regras para impedir práticas agrícolas impactantes sobre a biodiversidade; da que pede revogação da medida provisória sobre biossegurança à que propõe o ICMS ecológico para compensar municípios que tenham áreas de conservação ou indígenas; da que pede estudos a respeito dos impactos de organismos geneticamente modificados sobre a biodiversidade à que propõe a implantação de um grupo interministerial encarregado de definir critérios de contabilidade ambiental a serem observados em projetos públicos e privados.

Não é só. Houve também propostas de se implantar licenciamento ambiental rural, de criar mecanismos de monitoramento e fiscalização das reservas legais em cada propriedade, de avaliar impactos da perda da biodiversidade na saúde humana, de inventariar espécies encontráveis em montanhas, de criar até 2010 coleções com pelo menos 60% das espécies. Muitas propostas. E uma específica que propôs a criação de centros de pesquisa e informação sobre mudanças climáticas e sua relação com a biodiversidade.

E aí se entra em tema atualíssimo. Este ano, como já tem sido comentado aqui, a agricultura brasileira teve prejuízo superior a R$ 10 bilhões com secas extemporâneas (o Rio Grande do Sul, por exemplo, perdeu mais de 70% da safra de soja). Inundações e deslizamentos de terra continuaram a fazer vítimas no País, assim como ciclones (o do ano passado em Santa Catarina é classificado como "o primeiro furacão documentado pela Organização Meteorológica Mundial"). Fora do Brasil, o furacão Katrina produz uma devastação inédita no sul dos Estados Unidos, metade da Europa foi inundada enquanto a parte sul sofria com calor e incêndios, milhões de pessoas ficavam ao desabrigo por causa de inundações na Ásia.

Mas continuamos sem recursos para que a ciência monte centros avançados de informação, interligue-os em redes capazes de avisar a tempo a defesa civil em caso de fenômenos extremos, previna os setores econômicos do que pode acontecer e lhes permita adequar-se - adequação foi exatamente a tônica da última reunião da convenção sobre mudanças climáticas, em Buenos Aires.

O Estado de São Paulo já criou seu Fórum de Mudanças Climáticas; o Município da capital, um comitê específico para essa matéria. Mas ainda precisamos avançar muito. O próprio Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas já pediu que o País adote voluntariamente metas de redução dos desmatamentos e queimadas na Amazônia (que respondem por três quartos das emissões nacionais de gases do efeito estufa). Mas continuamos a resistir a compromissos dessa natureza, sob a alegação de que implicam restrições ao desenvolvimento e à soberania no uso de recursos naturais, além de que o Protocolo de Kyoto não estabelece essa obrigação - só para os países industrializados, que emitem há mais tempo e têm responsabilidade maior na concentração já existente de gases na atmosfera.

Pode haver lógica nesses raciocínios, sob a ótica da convenção. Mas falta sentido de urgência diante do quadro de realidade. E da certeza de que as pressões em sentido contrário - externas e internas - vão crescer rapidamente.

P. S. - Duas retificações: no artigo da semana passada, o nome de um dos cientistas foi citado errado - o correto é Alfredo K. Homma (e não Honama); e o território desmatado que ele cita é igual a três Estados do Paraná, e não do Pará. Peço desculpas.